quarta-feira, 1 de maio de 2013

CENA II - O Artur Cosme, Dançarino sem Par -






Episódios em C.T.

Na Festa da Abrigada -

 - O Cosme, dançarino sem par -

Como era sabido, as Construções Técnicas tinham obras espalhadas por todo o lado. Contudo, e apesar das distâncias, tudo o que de mau ou rocambolesco se passasse numa dessas obras, era certo e sabido que, daí a pouco já toda a gente, que operava nas restantes, sabia do caso. E repare-se que, na época, as comunicações eram muito rançosas, quase a pedal; o que faria se fosse hoje. Mas era triste, o facto de toda a gente, mesmo longe, vir a saber de certas cenas, de figuras que a malta fazia e, ao mesmo tempo, serem-lhes omitidas as boas ações que, por certo, também seriam praticadas. Nunca ouvi a ninguém contar, que determinado colega foi visto a ajudar uma velhinha a atravessar a rua ou que tinha botado uma moeda, preta ou branca, na bandeja do peditório na missa de domingo. Porém, no reino da coscuvilhice tudo se sabia. Ora se esse tipo de notícias chegava a África, com muita maior rapidez arribava ali à obra do Carregado, onde eu, à época, trabalhava.

Como já disse, por toda a parte, de norte a sul, de leste a oeste, nas ilhas dos Açores e da Madeira e até em África, era ver placas com o logotipo das CT expostos nestes múltiplos azimutes. E a oeste, mesmo no coração da denominada região com o mesmo nome, em contemporaneidade com esta nossa obra da Termoelétrica do Carregado, decorria uma outra obra a cargo das Construções Técnicas. Esta na Fábrica de Refratários da Abrigada. Quem por lá trabalhou, durante uns tempos, além de outros indivíduos, foi o meu colega e amigo, o desenhador Artur Cosme, de seu nome. Ele tinha residência em Lisboa, mas durante a semana de trabalho nem sempre ia a casa. Ou ia à quarta-feira ou só ao sábado. Porque, além de ter que trabalhar em regime de horas extraordinárias, também havia que ter em conta a despesa que acarretaria tais deslocações, se acaso fossem diárias.

Ora na Abrigada, tal como na esmagadora maioria das terras deste país, também havia Festa. Uma Festa anual, que durava uns quatro dias, de sábado a terça. Isso dava ao Cosme a hipótese de se divertir, ao menos, nas noites de segunda e terça. Nessas duas noites, que se lixassem os serões. Estes seriam passados mas era na farra, ali no meio do arraial, a ver onde parariam as modas. E, se a coisa se proporcionasse, por que não um bom pé de dança?!... O Cosme, pessoa vivida e experimentada, tinha no seu conceito que, naquelas terras da província, as miúdas, quando viam um papo-seco de Lisboa, um genuíno alfacinha, até ficavam apardaladas, isto é, entregavam-se de corpo e alma ao primeiro desses bacanos que por ali aparecesse.

Não havia que hesitar. O tempo extra que se lixasse. Era festa, era festa! E o Cosme, um tipo divertido e bonacheirão, perante tal oportunidade, não iria deixar os seus créditos por mãos alheias. Então, vestindo o seu fatinho azul-cinza, com o seu inseparável lenço de seda envolvendo o colarinho, como era seu timbre, e calçando um lustroso sapato preto, de rangedeira, lá partiu para o arraial. Mas não foi só… para melhor impressionar, não achava conveniente apresentar-se sozinho. Esse facto podia muito bem suscitar desconfianças nas gentes da aldeia. Para isso, de modo a contrariar esse possível inconveniente, o melhor seria convidar o seu colega de trabalho, o fiel de armazém Manuel Simão. Este, um bocado mais maduro, com poucas entradas na cabeleira, mas muitas cãs, sempre dava outra imagem e um certo cunho de respeito, como convinha.

E lá foram ambos, a pé. O recinto da Festa não estaria a mais de quinhentos metros da pensão. Chegados lá, o nosso amigo Cosme, não fez como muitos parolos da construção civil que, mal entram numa Festa, a primeira coisa que fazem é abancar numa mesa, com grandes pratadas de pipis, caracóis ou frango de churrasco na frente, a comer à mão, todos lambuzados de molho e acompanhados de lotes de garrafas de cerveja, para dar nas vistas. E pensam eles que estão a fazer uma bonita figura! Mas com o Cosme não era assim. A sua escola tinha sido outra: de mais fino trato e comportamento. Por isso mesmo, seria dentro desta bitola que ele iria pautar a sua conduta e a maneira de estar em público.
 Ora era mesmo no meio de um público, que ele, afinal, não conhecia, mas como era um predestinado em termos de desenvoltura linguística, não se coibiu de lançar a rede ― neste caso, o olhar ― numa rotação de 360º (de transferidores sabia ele), de modo a fazer a seleção e fixar-se em meia dúzia de moçoilas, das melhores moçoilas que por ali estivessem, mesmo que à guarda das respetivas mães, para, dali a pouco tempo, lançar-se à aventura de formular o necessário convite para ter com quem emparceirar, ou emparelhar, como dizem os alentejanos. E ele, visualmente, já tinha escolhido umas três ou quatro. Como todas elas estavam acompanhadas por senhoras de meia-idade, supostamente as suas mães, não adiantava fazer mais escolhas. Era aquela e acabou-se. Tanto fazia. Mas o Cosme, agora, estava perante um dilema: seria melhor avançar à papo-seco, mostrando frieza, até ficar mesmo na frente da miúda, formulando-lhe o convite cara a cara, olhos nos olhos, ou melhor seria gerir a cena à distância, optando pela sinalética? Deste modo, se houvesse uma nega, sempre dava para disfarçar, assobiando para o lado, fingindo que não era nada com ele. E depois de muito magicar e ponderar, chegou à conclusão que melhor seria optar pela via da sinalética. Levantou um braço, a dois tempos, esticou o indicador e fê-lo oscilar para a frente e para trás, ao tempo que fazia pontaria na direção da sua escolhida. Como resultado viu a moçoila acenar com a cabeça, no mesmo sentido que ele utilizara com o dedo, ou seja perpendicular a um limpa parabrisas. Com isto, com aquele gesto, queria ela dizer que sim. Estaria na disposição de conceder aquela dança ao Cosme. Pelo menos, aquela estaria já garantida; a seguir, logo se veria.
E o Cosme decidiu avançar. Aprumou-se o melhor que pôde, encheu o peito de ar e, com ar confiante e passo firme, caminhou aquela meia dúzia de passos que o separavam da sua presa e estacou na frente dela. Ali, já a sentir na cara o bafo da moça, estendeu os braços com o intuito de a entrelaçar pela cintura, quando, para seu grande espanto, viu a moçoila virar-se para a sua mãe e, de mãos nas ancas, parecendo indignada, disparou, do meio daquela boca de lábios carregados de baton ultra vermelho, o seguinte comentário:
— Olha!... Era só o que me faltava agora, era um careca!
Esta reação, que tinha tanto de intempestiva como de inesperada, fez com que o Cosme, num gesto instintivo, desse um passo atrás. Ao fazê-lo, tropeçou em algo. Rodou a cabeça e deu de caras com um fulano alto e mal trajado, que o olhou de cima para baixo, como que a pedir meças. Mas o nosso amigo nem reagiu. Fez girar os seus pés numa rotação de 180º e voltou para junto do colega Simão. Este, impávido mas pouco sereno, disse:
— O gajo, que anda agora a dançar com a gaja, estava aqui atrás de si. Foi ao sinal dele que ela respondeu que sim, que aceitava o convite para a dança. Devido ao facto de o gajo ser um bocado mais alto que você, induziu-o a si em erro. Mas isso não é grave! O Cosme, agora, vai por aí fora, convida outra miúda, para que mais não seja, retaliar contra esta.
O Cosme ouviu o discurso amigo do Simão e desabafou, assim:
— Vamos mas é já embora daqui para fora! Que se lixe a Festa!
E perante o ar de surpresa do incrédulo Simão, o Cosme esclareceu:
 — Você imagina o que a gaja me disse?
— Sei que lhe deu uma tampa, mas o resto…
 — A gaja disse-me assim: "Olha!... Era só o que me faltava agora, era um careca!" – informou o Cosme.
E o colega Simão, agora ainda mais fulo que o Cosme, desabafou:
— Olha a vaca, heim!… E o que é que o Cosme lhe respondeu? – quis saber o Simão.
  Ora, não lhe disse nada! O que é que eu ia dizer? Eu não esperava tal reação…
O Simão, mostrando solidariedade para com o Cosme, ameaçou:
— Se fosse comigo desancava a gaja à má-língua!
— E, a seguir, levava um arraial de porrada, mesmo no meio do arraial, não era? – rematou o Cosme.
O escalpelizar do episódio seria feito durante o caminho de retorno à pensão. Não era sensato estar ali, em pleno arraial, a fazer a análise da situação, sob pena de serem escutados por algum bufo da terra e sujeitarem-se a levar meia dúzia de sopapos por causa de uma fulana que, demonstrando pouca cultura social, provou que não tinha estatuto moral para ombrear com o Artur. Além do mais, era mentirosa, porque chamou careca ao seu convidando, sem razão plausível, já que num cabelo ralo, com umas entradecas acima da testa e uma coroa no cocuruto, não se pode confundir com um cabeça lisa, do estilo Yul Brynner. Mas o Cosme acabara de tomar a decisão mais sensata: regressar à pensão e deixar a tipa a falar, não sozinha, mas com um fulano alto e mal vestido p´ra caramba, que nem devia dar duas para a caixa.

N.B. Extrato do VOL.II de “Degraus e MARCOS da VIDA”, da autoria de José Caria Luís
Obs. - Texto escrito sob regras do novo A.O.