quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

CENA IXX - Nas CONSTRUÇÕES TÉCNICAS em MARROCOS - Controlo de Velocidade



11.9 – Os gendarmes e os esquemas
a) - O controlo de velocidade -
A polícia marroquina tinha uns métodos muito sui generis de atuar. Fosse no controlo de trânsito e aplicação das multas respetivas, na intervenção em qualquer desavença, ou mesmo no ato de subtrair acompanhantes do interior das viaturas, eles, polícias, atuavam de uma maneira muito peculiar. Por exemplo: fui, por várias vezes, mandado parar pelas patrulhas de trânsito, tanto à saída como à entrada de Oujda. Algumas vezes, o argumento por eles utilizado era um alegado excesso de velocidade, noutras, era um controlo de luzes das viaturas. Mas tudo isso seria normal, não fora os métodos e apetrechos utilizados.
Em todas as madrugadas, saíam da cidade de Oujda, a caminho da obra, pr'aí uma dezena de viaturas. Quase todas Renault 4L, de cor branca, com matrícula marroquina, mas conduzidas por portugueses, normalmente chefes de serviço. A polícia marroquina bem sabia disso. Eles conheciam-nos à légua, como se diz por cá. E como lhes cheirava a dinheiro, colocavam-se de atalaia, em pontos estratégicos, para tentar sacar alguns dirhams ao nosso pecúlio. Como se compreende, o responsável por cada uma dessas carrinhas não viajava sozinho. Havia chefes de equipa e manobradores portugueses que, tendo optado por levar a família de Portugal para Marrocos, aqui alugaram casa. Estava então combinado que o seu transporte de e para a obra seria garantido por meio das ditas R4L. No entanto, em certas ocasiões, quando, por qualquer motivo, havia uma vaga, até alguns dos nossos empregados marroquinos chegaram a viajar connosco. E foi mesmo num dia em que essa situação se verificou, quando eu trazia, de boleia um serralheiro marroquino, que habitava em Oujda e pertencia à oficina do Pimpão, que fui intimado a parar por uma patrulha de gendarmes. No caso do controlo de velocidade, foi assim como se descreve.
Quando, à saída de Oujda, a caminho da obra, depois de ter percorrido aquela reta, de uns quatrocentos metros, onde se situava a delegação do Ministério dos Transportes, fui mandado parar por uma patrulha de gendarmes. Aqui, no termo do dito tramo, e ao sinal da placa circular de Stop, parei. Parei e esperei pela abordagem das autoridades. Os guardas, aproximaram-se, e, já fartos de saber que o fulano que conduzia a Renaul 4L era português, lançaram um olhar frio, misto de arrogância e ameaça, ordenando (em francês, agora traduzido):
— Bom dia!
— Bom dia! – respondi.
— O senhor vai passar para cá os documentos. – e eu entreguei-lhes os documentos. Viram, reviram e disseram:
— Agora, vai ter que pagar trinta dirhams pela multa do excesso de velocidade em que circulava. – ordenaram.
Eu, que já sabia como é que aquela cena das multas funcionava, retorqui:
— O quê? Excesso de velocidade? Nem pensem! Eu vinha para aí a uns 37 ou 38 km/h, não mais.
— Não, não! O senhor, que bem sabe que, aqui, o limite de velocidade é de 40 km/h. Como vinha a muito mais, está em transgressão.
Na época, ainda não existiam as pistolas de controlo de velocidade, quanto mais estas sofisticadas maquinetas eletrónicas, que os maganos utilizam nos esconderijos só para nos lixarem o dinheiro e, muitas vezes, a própria carta de condução. Ora, por isso mesmo, eu sabia que eles estavam a atuar a sentimento e não com qualquer base credível que os habilitasse a aplicar-me qualquer coima. E foi com o propósito de confrontá-los com aquele, quanto a mim, precário argumento, que lhes perguntei:
— Como é que os senhores gendarmes, que não possuem qualquer equipamento eletrónico que vos permita concluir a que velocidade é que eu circulava, justificam essa vossa ação de pretenderem aplicar-me uma coima por uma infração que não cometi?
Os tipos, mostrando impaciência, reagiram assim:
— Bem, o senhor vai com pressa, e como nós estamos a acabar o turno, a multa fica por quinze dirhams e não se fala mais nisso.
— Não pago trinta, nem pago nada! Aliás eu não vinha em incumprimento. – ao que os gendarmes reagiram:
— Repare o senhor: quando avistámos a viatura no início da reta, pusemos os segundos do relógio a zero; agora, assim que passou naquela árvore de tronco pintado de branco, o tempo decorrido foi de trinta e dois segundos. Ora, como a distância entre os dois pontos é de quatrocentos metros garantidos, o tempo gasto nunca poderia ser inferior a trinta e seis segundos. É por isso que tem que pagar a multa.
Eu, ainda disse:
— Isso não é fiável! Logo, entre o tempo que decorre entre o vislumbrar a viatura e pôr o cérebro a raciocinar para, depois, acionar o botão do relógio vai um tempão. Este lapso de tempo repete-se na chegada, certamente. Além disso, a árvore está a mais de trinta metros do lugar onde a patrulha se encontra, o que vai, com toda a certeza, distorcer a imagem do momento da passagem em frente à árvore.
Eles estavam tão fartos de conversa fiada quanto eu, mas, no propósito de despachar freguês, e no sentido de abreviar a cena, tentaram novo desfecho, agora mais barato.
— Pronto. A multa fica por dez dirhams, e vamos à vida.
Foi então que o sacana do serralheiro marroquino, a quem eu tinha dado boleia, e viajava no banco de trás, puxou de uma nota de dez dirhams e, num ápice, à socapa, passou-a para as unhas do polícia. Este mandou-me seguir viagem, mas eu, que me tinha apercebido daquela operação da passagem da massa, ripostei, assim:
 — Eh pá, quanto deste ao gendarme?
— Dei os dez dirhams!
— Quem mandou? Não tinhas que os ter dado!
E, indignado, no sentido de me vingar pelo gamanço, exigi:
— Agora, os senhores gendarmes vão ter que passar o recibo da multa.
A esta minha exigência respondeu o chefe da patrulha:
 — Recibo? Nós só passaríamos recibo, se a multa tivesse ficado nos 30 dirhams inicias, mas como isso não aconteceu, como lhe fizemos um grande desconto, o senhor não vai ter direito a nada. E, e… já vai com sorte!
Queria ele dizer na dele, que o melhor que eu tinha a fazer era dar de frosques, dali para fora, com direção e sentido da Obra.
Senti-me revoltado, danado até. Voltei-me então para o palerma do serralheiro e desabafei:
— Ah grande sacana! Agora, o que eu devia fazer era pôr-te na rua! Devias era ir a pé, para não seres burro.
E, para descarregar o resto da ira, ainda disse ao rapaz:
— Além de não veres nem um cêntimo desse dinheiro, nunca mais te dou boleia!
O rapaz, dali até à Obra, talvez uns 35 kms, lá foi tentando convencer-me de que pagou os dez dirhams com medo de se tornar num alvo de retaliações por banda dos gendarmes. É que, segundo contou, sabia de casos de perseguições a amigos seus por banda da polícia, devido a situações idênticas. Isto é, ficavam marcados pelo olho sinistro dos bófias, que até passavam palavra aos demais. Enquanto os seus rostos não fossem esquecidos, andavam a ser permanentemente saqueados. Não sei bem se seria assim, mas, em Marrocos, onde se regateava o preço da multa como se estivéssemos na Medina a negociar uma manta, um albernoz, meia dúzia de figos-da-Índia ou um quilo de tâmaras, tudo era possível.
Passados dois dias, o chefe da oficina de serralharia, o Pimpão, veio ter comigo e pediu-me para esquecer o incidente, até porque o rapaz, mesmo tendo em conta as limitações locais, era um ótimo serralheiro. Isto quer dizer que, além de eu ter dado o dinheiro ao gajo, ainda lhe dava boleia, sempre que havia vaga.
 Eles tinham um grande pavor dos gendarmes, mas aquela cena do controlo de velocidade, não deixava de ter a sua parte cómica.

 Muitos condutores portugueses queixavam-se de que a polícia, sempre que os mandavam parar na cidade e topassem que a acompanhante era uma moça marroquina, ordenavam a imediata saída daquela, deixando o condutor como que apeado, a falar sozinho.

Texto extraído de "DEGRAUS E MARCOS DA VIDA", Volume II.