sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Engº Carlos Santana


Cenas com o engº Carlos Santana (I)
1 - Prelúdio
Em certos episódios escritos, tanto em livro como em blogue, abordei temas e cenários, que, enquanto colaborador das C.T., achei bastante pertinentes. Pela sua relevância achei que deviam os mesmos figurar nos meus escritos de memórias, dando vida às narrativas mais atípicas, ligadas às nossas obras, cujos protagonistas foram desfilando através dos relatos, versando os anos 60, 70 e 80. Os que os leram sabem que até o nosso engº Braz Menezes a eles esteve ligado e, por isso, noutra rubrica, também teve honras de destaque. Hoje, porém, com a devida vénia, julgo ser, de todo, pertinente destacar a contribuição do engº Carlos Santana. 
      Ouvi, por mais de uma vez, o engº José Godinho, da TAP, referir-se ao engº Carlos Santana, como o mestre Santana. No entanto, só algum tempo depois fui compreendendo o porquê desse tratamento, na verdadeira aceção da palavra. Foram muitas as ações que estiveram na base deste pensamento. Desde o dimensionamento de Estruturas Tubulares, Cofragens e Composições de Argamassas e Betões, tudo isso me foi ensinado por ele. 

2 - O Asfalto em Banho-Maria
      Estava a Marina de Vilamoura na sua fase intermédia, quando, por força do planeamento de obra, chegou o dia e a hora de proceder a um ritual, que consistia no batismo da colocação de asfalto no miolo daquela amálgama de pedregulhos do Esporão 1. No fim daquela tarde de julho, começava a juntar-se na raiz daquele esporão o pessoal técnico e administrativo que havia de testemunhar tão aliciante evento. O avanço de cada operação era de 10 m. Colocadas que estavam todas as camadas de enrocamento naquele conjunto de forma trapezoidal, havia que proceder à sua aglutinação através da selagem por meio de uma mistura de asfalto e filler. Eram baldes de 0,75 m3, transportados por meio de camião – 4 baldes de cada vez - desde a Central Marini. A uma temperatura entre 120 e 150º, seriam colocados, por basculação, através da grua Pennine II, e segundo esquema desenhado em tabuleiro, monitorizado por célula fotoelétrica colocada na lança da grua.
      O “Estado-Maior” da Lusotur, como dono da Obra, estava todo em peso. Agora, era ver e ouvir, cada um dos circunstantes a tentar “adivinhar” como é que uma operação daquela complexidade se iria desenrolar. Vaticinava-se muita coisa, múltiplos processos, mas para nós, os que sabíamos como proceder, aquilo nem teria assim tanto de transcendente… E como não há nada mais prejudicial a quem trabalha, do que a presença daqueles que nada fazem, nem sequer os comentários, por mais ridículos que fossem, nos faziam rir.
      E eis que o primeiro balde de asfalto, depois de se lhe conferir a temperatura através do pirómetro, era içado no gancho da Pennine e descia a caminho do nicho pré-estabelecido, mas que ninguém via porque o sítio estava submerso.
    O silêncio, que nesta fase imperava, foi bruscamente interrompido por um grito lancinante lançado pelo chefe da Fiscalização, o engº Dragão. De olhar um tanto perturbado, perguntou ao diretor da Obra, Carlos Santana:
      - Ó Santana, então vocês vão colocar o mastique dentro de água?
      O engº Santana que, até então, tinha mantido uma postura serena, observando os trabalhos, “passou-se dos carretos” com tal pergunta e, respondendo com outra pergunta, atirou:
      - Ó engº Dragão, mas que pergunta é essa? O senhor estudou nos mesmos livros que eu? Isso, nem é pergunta que engenheiro faça! Com a agravante de, tanto o projeto como a fiscalização serem vossos!...
      O engº Dragão, que se fez de mil cores, não retorquio. Passados poucos minutos, talvez devido ao cansaço por estar para ali de pé, fazia tempo, escapuliu-se, de fininho, sendo que nos deu um descanso de uma semana, sem ser visto por ali. 

- Os Duques d’Alba  
Estava agendada, para breve, uma visita à obra da Marina por parte do Presidente Américo Tomaz. Ora, como o fundador do Banco Português do Atlântico, da Lusotur, e seu principal administrador, dr. Cupertino de Miranda, ainda não conhecia a sua obra, ao vivo, achou que deveria fazer uma visita ao empreendimento antes do Presidente da República.
Numa tarde soalheira de junho de 1973 entrou, obra adentro, uma comitiva de viaturas de luxo onde, numa delas, viajava o comendador. Não sei porquê, mas essa tal comitiva não se deu ao trabalho de percorrer as estradas da obra. Será que alguém mais influente dissuadiu os membros do grupo de fazer o périplo pela obra? Realmente, meter carros de luxo, topo de gama, pretos a brilhar, naqueles caminhos poeirentos, calcados por camiões carregados de pedregulhos e outras pesadas máquinas, não era sensato. A pé, pior seria emenda que o soneto, pelas razões apontadas. Então o que é que, verdadeiramente, eles pretendiam fazer? Foi simples: por convite do diretor da obra, engº Carlos Santana, que lhes franqueou as portas do seu gabinete, ficaram a conhecer, à distância e através dos mapas e projetos afixados nas paredes, uma obra que, em breve, assistiria à visita do Presidente Tomaz. Além disso, como os nossos escritórios se situavam no cimo de uma colina, de onde se vislumbrava toda a obra, melhor não havia que aquele ponto de observação, para se ficar elucidado acerca do andamento dos trabalhos.
O diretor da obra, ao mesmo tempo que ia assinalando as barras e datas no Plano de Trabalhos, tipo Gantt, também descrevia, de ponteiro em riste, os diversos locais específicos e apontava , através da ampla janela, para cada um deles.
O engº Santana dizia:
— Ali, ao centro, é o Plano Inclinado; a seguir é a Doca do Pórtico; aqui, mais abaixo, onde estão os Duques d’Alba…
Aqui, o engº Santana foi bruscamente interrompido pela intempestiva entrada do dr. Cupertino. No preciso momento em que o engenheiro proferiu os nomes dos Duques d’Alba[1], o comendador perguntou:
— Os Duques d’Alba? Onde é que eles estão? Onde é que eles estão?
Eu bem sei que o administrador da Lusotur não tinha a obrigação de saber, em termos de construção, o que eram Duques d’Alba, mas a repentina curiosidade com que fez e repetiu a pergunta, é uma demonstração dos complexos que afetam muitas figuras da alta sociedade, mesmo tratando-se de Cupertino de Miranda.
Os trinta anos que ele passou no Brasil, devem-lhe ter toldado algum conhecimento da realidade ibérica ou então sofreria de síndrome da monarquia. Nem sei se foi por causa dessa maleita da monarquia, que o comendador antecipou a sua visita para não se encontrar com o republicano Tomaz, mas vá lá agora saber…


4 - A visita do Presidente Tomaz
Francamente, não me passava pela cabeça ser possível a visita de um Presidente da República à obra da Marina de Vilamoura, mas foi isso mesmo que aconteceu. Um mês depois da visita relâmpago do comendador Cupertino de Miranda, entrou na nossa obra uma majestosa comitiva, encabeçada pelo Presidente da República, almirante Américo Tomaz. Trazia consigo o patrão das pescas e guardião do Estado Novo, contra-almirante Henrique Tenreiro. Como pendura apareceu por ali a dona Fernanda Pires da Silva (proprietária do Autódromo do Estoril), com um arquiteto e um pintor, tendo apresentado os ditos como “os meus técnicos”.
Para quem não saiba, esta senhora era co-proprietária do Hotel Grão-Pará, que estava em construção e se situava a leste da Marina. O outro sócio era, nem mais nem menos, que o ex-Presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek de Oliveira.
As viaturas, uma a uma, com a do Presidente à cabeça, estacionaram no hall sob o alpendre dos escritórios. Em seguida foi o almirante convidado a entrar no gabinete do diretor da obra, engº Carlos Santana, a fim de se inteirar, através do projeto, de que constava a obra. No que concernia ao empreendimento, suas zonas específicas, funcionalidades, quantidades de trabalho e prazos, era de bom-tom que se elucidasse parte da comitiva[2], antes da visita os locais. Assim, o engº Santana, de vara na mão, e apontando, ora para os planos, ora para a obra, ia descrevendo cada atividade e meios utilizados para dar cumprimento às tarefas programadas.
Estava a cerimónia de apresentação prestes a findar, quando a dona Fernanda chegou à fala com o Presidente, com o intuito de lhe meter uma cunha, mesmo à vista de toda a gente. Para isso, disse:
— Senhor Presidente, este é um grande empreendimento turístico, tal como todos os complexos nesta faixa do litoral, daqui até ao Hotel da Penina. No entanto, se a construção da cimenteira da Cisul, não for embargada, os fumos e pó da fábrica vão afetar todos eles.
O Presidente, a quem chamavam o cabeça-de-abóbora, mas, pelos vistos, não era assim tão burro, e sabendo onde a senhora queria chegar, respondeu:
— Ó dona Fernanda, não exagere! Acha então a senhora, que a Penina, que dista daqui uns sessenta e tal quilómetros, estará exposta a pó e fumos da cimenteira? Nem pense!
A senhora, vendo que já tinha metido água, não disse mais nada. O Presidente sabia bem que, o que a dona Fernanda pretendia era fazer da fábrica tábua rasa para não causar incómodos ao Hotel Grão-Pará, da qual era dona. Esse sim, ficando a uns seis quilómetros da Cisul, poderia, eventualmente, vir a ser afetado com os fumos tocados a ventos de norte.
Já na fase final, antes da saída de todo aquele pessoal, um tenente da GNR, membro da Casa Militar de Belém, que acompanhava a comitiva, resolveu sair dali sem atropelos. Para isso dirigiu-se para a porta lateral do escritório, em cujo limiar se cruzou com o engº Carlos Santana. O militar, achando que tinha feito uma boa jogada ao antecipar a sua saída, disse ao engenheiro:
— Vou mesmo por aqui, pela porta do cavalo.
Ao que o engº Santana retorquiu:
— Esta porta é a que eu utilizo todos os dias!
O tenente, achando que já tinha dito asneira, pediu desculpa pelo dito e saiu para a rua.

5 – Os Caguinchas 
       Ainda na Marina de Vilamoura, quando passei sobre um monte de tout-venant, coloquei mal um pé e magoei-me num tornozelo. De tal modo que, passados dois dias, fiquei com inchaço tal que mais parecia uma batata. Mal podia colocar o pé no chão. O engº Carlos Santana, vendo-me naquela situação, aconselhou-me um ortopedista, seu amigo, com consultório em Faro. E aí fui eu.
     O médico observou-me o tornozelo e decidiu:
     - O senhor vai ter que levar umas infiltrações!
     Nisto, mesmo sem auscultar a minha opinião, muniu-se de uma seringa, encheu-a com um líquido espesso, esbranquiçado, enfiou numa extremidade uma mega-agulha, que deveria ter uns 15 cm, e vai disto: tornozelo acima até despejar o conteúdo.
     Gritei e não foi pouco! E a verdade é que saí muito pior do que entrara. Mas isso era natural, estava tudo bastante dorido. Mas o compromisso era ter que repetir a dose na semana seguinte, e na outra e mais na outra… Como, passados uns três ou quatro dias, vi que o inchaço ia diminuindo, decidi dar-me como curado e não mais pus os pés naquele consultório.
     O médico, falando com o seu amigo Carlos Santana, dizia-lhe:
     - Eh, pá, esse teu subordinado nunca mais cá veio!  
     E era verdade. Nunca mais lá fui. Então, o engº Santana, de vez em quando, atirava-me com a piada:
     - Ó Caria, o médico diz que você não voltou lá, porque é um caguinchas!
     Mas os tempos iam decorrendo e foi em correria coxa que o engº Santana se dirigiu ao consultório do tal médico seu amigo. Ele estava com um inchaço num joelho e, por isso, começou a coxear. Segundo me disse, depois, bem depois, o tratamento foi igual ao meu. A abominável agulha e mais aquele espesso líquido. Como (não) seria de esperar, o engº Santana ficou-se pela primeira e única dose.
     Agora, já éramos dois, os caguinchas.


6 - O Primo Pires
     Numa ida à Escola Industrial de Faro com o engº Carlos Santana, vendo que ainda era cedo para a hora da reunião marcada com o Diretor, estivemos por ali, pelo jardim, a fazer horas. Estávamos em conversa sobre não sei o quê, quando passava por perto um indivíduo que, ao ver o engº Santana, correu a cumprimenta-lo.
     - Olá, Carlos Santana, estás bom?
     - Olha o primo Pires!...
     Conversaram durante um bom bocado e despediram-se. Eu estranhei, porque nenhum deles referira nem um familiar, sequer… Nem tios ou tias, outros primos… nada. Intrigado, perguntei:
     - Então, engº Santana, mas ele é seu primo de que parte?
     - De parte nenhuma! – respondeu.
     E continuou:
     - Primo Pires é mesmo o seu nome! E é curioso, porque ele, Primo Pires, é engenheiro licenciado no Técnico, por antiguidade.
     - Por antiguidade??? – estranhei.
     - Sim, por antiguidade. Andou tantos anos, matrículas e mais matrículas, que foi licenciado por antiguidade.
     Por esta é que eu não esperava!




[1] Blocos formados por cortinas de estacas metálicas, tipo Larsen.
[2] Parte da comitiva, porque metade ficou na rua, por falta de espaço