quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Cena XII - Lisnave, 1969 - O Santos e o Turza



- Dois dos excêntricos –

Esta obra, da Doca Seca nº 10, nos Estaleiros Navais da Lisnave, na Margueira, teve como topógrafo, na sua fase inicial, o Bento Paulino, porém, devido à sua saída para a obra do Hangar 6 da TAP, no Aeroporto de Lisboa, entrou, em sua substituição, o Turza Ferreira. Este nem era mau diabo, mas quando lhe falavam de certas pessoas de quem ele não gostava , ia aos arames. Em certas ocasiões, tinha tais ataques de fúria que dir-se-ia que o homem corria sérios riscos de se passar deste para o outro mundo. E não era preciso grande provocação para o afinar; para isso, bastava, por exemplo, e a propósito de nada, falarem-lhe no nome do Miguel Temudo ou no do engº Cabrita. A sua tez ruborizava de tal jeito, que mais parecia que as bochechas poderiam rebentar a qualquer momento.

Eu conhecia-o da obra do Carregado, mas mal. Nunca tive qualquer ligação de serviço com ele, nem fazia a mínima ideia de quais eram as taras do tipo, mas agora, na Lisnave, com alguns meses de obra pela frente, é que eu iria saber quem era, afinal, o Turza Ferreira. E num dia de bastante sossego, em que o encarregado Silva não foi para o nosso escritório fazer sala ou discutir com o fiscal, tivemos a agradável visita do já conhecido controlador Feliciano Santos que, agora, trabalhava na nossa obra da Siderurgia Nacional, no Seixal. Não me lembro a que propósito ele terá ido à Margueira, mas, para o caso, isso também não é relevante.

Cumprimentos para cá, salamaleques para lá, e eis que entra na sala, vindo da obra, o nosso amigo Turza. Com a chegada do topógrafo, continuaram os abraços, mas desta vez com, apenas, dois protagonistas: o Santos e o Turza. O Feliciano Santos, sabendo dos fracos do colega, tratou de engendrar um esquema que visasse pô-lo em polvorosa. No entanto, para que a conversa parecesse séria e não desse aso a que o Turza desconfiasse da tramoia, o Santos falou comigo de modo a que o outro se sentisse à margem da conversa. E disse, mais ou menos isto:

— Ó Zé Luís, o Temudo está a organizar uma espécie de biblioteca de controlo de operações e precisa que você lhe arranje os dados desta obra: os que considere mais importantes.

 E, como se não bastasse, de modo a provocar o Turza, acrescentou:

— Aquele tipo, o Miguel Temudo, é um profissional com uma capacidade extraordinária. O gajo tem ideias fabulosas! – reforçou o Santos.

O Turza, que permaneceu algum tempo sentado ao estirador, ao ouvir os elogios e a franca apologia do seu inimigo figadal, deu dois saltos, empertigou-se, ficou vermelho e reagiu, assim:

— O quê? O que é que você está para aí a dizer? O Temudo é um génio? Esse gajo é a maior nódoa que alguma vez entrou nas Construções Técnicas! Um sabujo de um lambe-botas, é o que ele é!

O Santos, com a cena controlada, ainda iria espicaçar mais um pouco. E prosseguindo na senda de elogios ao seu chefe, frisou:

— Ó Turza, eu não sei que razões terá você para sentir tal animosidade contra o Temudo. Para mais, sendo eu amigo dos dois, custa-me vê-los assim, de costas voltadas, a digladiarem-se como ferozes inimigos. Vai ver que, um destes dias, ainda vos reúno aí numa almoçarada e obrigo-os a fazer as pazes.

Aqui é que o Santos estragou tudo, conforme pretendia. O seu amigo, ao ouvir tais barbaridades, dava pulos que nem macaco. O homem espumava pelos cantos da boca e, ao mesmo tempo que cerrava os punhos, respondia ao Santos, nestes termos:

— Pazes com esse gajo? Eu quero é vê-lo morto! Você ainda tem lata para gabar esse estafermo? Um génio? Ele, antes de vir para as Construções Técnicas, era empregado dos CTT, em Santarém. Sabe qual era a sua função? Era a de estar sentado à boca de um guiché, com a língua de fora, onde os clientes molhavam os selos que, depois, colavam nos envelopes.

O Feliciano Santos, longe de estar satisfeito com a cena, ainda atirou com mais esta, que sabia ir ferir, ainda mais, o seu interlocutor:

 — Mas olhe que o engº Cabrita gosta muito do Temudo!

Pior foi a reação do Turza Ferreira, que atirou:

 — O engº Cabrita? Esse é mesmo o chefe da pandilha! Não há nesta empresa, engraxador que não esteja debaixo das asas do engº Cabrita. – e sem se deter:

— Esses gajos formam uma roda, e só lá entram os bajuladores com provas dadas. Alguns bem tentam, como você! – insistiu o Turza.

— Eu? - questionou o Santos.

— Sim, você! Quem defende e elogia esses dois trastes, só pode estar aos repelões e a puxar saco, no sentido de arranjar um qualquer buraco que lhe dê entrada nessa sinistra roda.

E finaliza o Santos, com cinismo:

 — Eu não esperava que você me tivesse nessa conta!

 — Ah não? Se eles são os seus modelos, os seus favoritos, então você é tão bom como eles.

O Feliciano já tinha chegado onde queria, mas eu e o Sequeira, que não estávamos a par daquelas rábulas, disputas e rivalidades, ainda nos divertimos, se bem que de modo comedido, não fosse o homem desconfiar que havia por ali complô.

O Turza Ferreira, depois de tanto pular, espumar e, por duas vezes, ter atirado com o capacete ao chão, bateu com a porta e rumou à obra. Julgo eu que o terá feito com o fito de apanhar um pouco de ar fresco, já que, com aquela irritação, não teria condições para operar, com fiabilidade, uma simples fita métrica, quanto mais um taqueómetro...

Entretanto, o Santos, depois de semear aquela onda de mal-estar em casa dos outros, "desalvorava", de fininho, para a Siderurgia, sendo que eu e o Sequeira é que ficávamos com o ónus de ter que aturar a ira do Turza durante o resto do dia.
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Extrato de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", VOL.II

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