sábado, 23 de novembro de 2013

Cena XVIII-O engº Marteleira na Cimpor-1976


- O batismo do engenheiro Marteleira, lá nas alturas –

            Este engenheiro estagiário era um daqueles fulanos que, de tão atípico, dava gosto ouvir o pouco que ele tinha para dizer.
            Creio que era natural e residente na povoação de Marteleira, Lourinhã e, soube mais tarde, que ele chegou a ser técnico da Câmara Municipal da Lourinhã. Como pessoa, era um fulano pouco expressivo, algo tímido, mas, se puxassem por ele, sempre dava troco a uma qualquer conversa. Desde que o tema não abordasse política, ele, de modo mais ou menos comedido, ia a todas. O Marteleira só não gostava de que lhe falassem de política, porque, nesse campo, queria manter, a todo o custo, um segredo que, para mim e mais algumas pessoas do escritório, já não o era de todo. E o que é que o levava a tentar esconder a sua tendência política? Era pelo simples (?) facto de ser simpatizante do CDS, de Freitas do Amaral. Pretendia ele passar despercebido no meio daquela multidão de comunistas (muitos); socialistas (poucos); sociais-democratas (poucochinhos) e direitistas, que se soubesse, só ele… O Marteleira estava mesmo em franca minoria. Na sua maneira de ver e no seu dizer, se os gajos da Comissão de Trabalhadores descobrissem que ele era do CDS, estava feito ao bife.
            Ele, como já disse, era engenheiro civil, na qualidade de estagiário e uma das coisas de que ele não gostava de fazer era ir à obra. Fora atirado para o Controlo e no escritório é que ele se sentia bem. Sempre era mais confortável do que ter de ir para a obra apanhar o tal irrespirável ar fabril. Mas ele estava enganado e mal informado, porque, qualquer que fosse a atividade específica que lhe tivessem confiado, para quem estava a dar os primeiros passos, era fundamental adquirir a raiz e as bases. Para isso, devia fazer vários périplos pela obra a fim de muito observar, questionar, muito ouvir e, finalmente, fazer a sua análise.
Tudo isto para dizer que eu, notando nele essa pecha, o incitava a ir às frentes de trabalho de modo a enriquecer a sua bagagem e conhecimentos. Foi por isso que um dia o convidei a acompanhar-me.
            — Ó engenheiro Marteleira, amanhã, pelas 10 horas, vou levá-lo a dar uma volta à obra. – convidei.

            — Ó sr. Caria, amanhã não sei se posso! Sabe… tenho umas coisas para fazer…

            — Ah tem? E você pensa que, nesta obra, haverá alguém que não tenha coisas para fazer? Não podendo ser amanhã, então vamos agora!

            — Agora? Agora não! Não estou mentalmente preparado para isso.

            — Mentalmente? Ah isso agora é assim? Bem, então fica marcado para as dez de amanhã. – marquei eu.

            — Então está bem! – concordou o engº Marteleira.

            E foi por volta da hora combinada que saímos do escritório a caminho da obra. Mas começar por onde? Por que edifício? Naquela fase de obra, achei que o melhor era levá-lo à Torre Dopol. Havia algumas atividades a decorrer naquele edifício que, acreditei, seriam interessantes para ajudar a desemburrar[1] o nosso amigo Marteleira. Só que esses trabalhos a decorrer na Torre Dopol, situavam-se no cimo do edifício, cuja cota altimétrica era de + 82,00m.
            E, comigo à frente da reduzida comitiva (eu e ele), começou-se a pisar os primeiros degraus de madeira que, sem espelhos, poderiam causar alguma impressão a quem olhava para baixo, para o chão, através dos intervalos. Mas essas escadarias exteriores ao edifício, e a este amarradas, com patamares a cada 2,50m (sensivelmente), eram feitas em estrutura tubular, com corrimão e tudo. Mas continuando a subida, chegámos ao segundo patamar, o que, para o aprendiz de engenheiro, já começava a meter alguma impressão. Do modo como se agarrava ao tubo do corrimão, dava para perceber que o Marteleira sofria de vertigens.
Bem, na verdade tenho uma vaga ideia de que, com avanços e paragens, chegámos ao topo do edifício vinte minutos depois, coisa que, numa subida em condições normais, era feita em quatro ou cinco. Mas este intrincado episódio não se esgotou por aqui, porque o nosso homem, deveras incomodado e de tez esbranquiçada, nem teve pachorra para ver os trabalhos. Ele só pedia para descermos. Agora, o pior é que tínhamos que fazer a descida. Como era a descer, e partindo do princípio que para baixo todos os santos ajudam, pensei ser muito mais fácil do que havia sido para cima. Logo na entrada do, antes último e agora primeiro, lanço de escada, o engº Marteleira, rodando sobre o seu eixo no sentido de procurar a melhor posição para atacar a descida, e não lhe achando o jeito, perguntou-me:

— Ouça lá! Você acha que eu devo descer de frente ou de costas?

— Se você descer de costas, o mais certo é ter de galgar os degraus todos de uma vez, até ao chão. Portanto, desça do modo como eu vou fazer. – aconselhei.

Com isto, eu só queria que ele chegasse lá abaixo inteiro. Mas com aquela minha piada, o homem ficou psicologicamente afetado. Tanto assim, que, agarrando-se ao corrimão que nem uma lapa, deu para perceber que o melhor era pedir o almoço lá para cima, porque, pelos vistos, não íamos sair dali tão cedo. Depois, ou ele embarcava no cesto de uma grua, ou tínhamos que recorrer a um helicóptero de aluguer para o tirar dali.
Devagar, devagarinho, comigo à frente, para transmitir ânimo ao meu companheiro de aventura, lá descemos até à base. Já em solo firme, sentindo-se são e salvo, o engº Marteleira, com a voz embargada pela emoção e pelo cansaço, com a tez amarelada que nem limão maduro, ainda arranjou fôlego para me dizer:

— Porra, sr. Caria, nunca mais me apanham na obra!

E, que se saiba, até hoje, nunca mais se viu o Marteleira na obra. Mas eu sabia lá que o homem sofria de vertiginite aguda[2]!...




[1]  Instruir
[2] Possuidor de fortes vertigens
Extrato de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", Volume II

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