terça-feira, 28 de abril de 2015

FEIRA dos SANTOS - Cartaxo

"OS CARRINHOS de CHOQUE" na FEIRA dos SANTOS.
De um modo geral, QUASE TODOS nós, quando pequenotes, desfrutámos do prazer de "andar" nos carrinhos de choque.
Na Feira dos Santos, no Cartaxo, aquilo era um corrupio de gente adulta, com a miudagem pela mão, sôfrega, acotovelando-se, em vez de formar fila, para tentar obter um lugar num daqueles carritos, cujos clientes teimavam em não descolar o traseiro do assento, dando a vez aos demais, que desesperavam. E a verdade é que a nossa vez não havia maneira de chegar!...
Mas quando eu digo QUASE TODOS, mesmo não tendo elementos para estabelecer estatísticas, sei bem do que estou a falar. Para mim, enquanto rapazito na casa dos oito/dez anos, de todas as vezes que alapei o rabo num daqueles carros, tinha que assistir, primeiro, a uma zaragata entre o meu pai e um dos "mangas" empregados dos carros de choque. Era o choque inicial, para abrir o apetite e aquecer os motores. Mas, pior que isso, (eu diria melhor que isso) foi uma cena a que assisti, protagonizada, não pelo meu pai, como era costume, mas pelo seu meio-irmão, o "Chico Porreiro". Era de Vale da Pinta, mas casado na Ereira. É que a rede sanguínea, ainda que em dose reduzida a 50%, ainda corria nas veias de ambos, e os maus-fígados também. Para agravar a situação, o "Chico Porreiro" nunca na vida tinha conduzido, nem uma carroça quanto mais um carro de choque. Mas ele lá foi. Muito compenetrado no seu papel, com a filha Ilda pela mão, consegue, enfim, a desejada vaga num daqueles bólides. Pegou na miuda, sentou-a no assento e, ato contínuo, saltou para o interior da máquina, agarrando-se ao volante, com unhas e dentes. Ao troar da sirene, que anunciava o arranque daquela corrida, QUASE TODOS deram ao "start", procurando cada qual posicionar-se de modo a conseguir embater nos adversários, com a força e jeito possíveis, com a perícia bastante para não se deixar atingir. É verdade que QUASE TODOS, porque o meu tio "Porreiro", mesmo de dentuça arreganhada devido ao esforço, à pressão e à vergonha, não conseguia que a sua viatura se deslocasse do sítio de onde o seu antecessor a tinha deixado. O bólide, em boa verdade, lá deslocar, deslocava-se, mas só se deslocava por ação de terceiros. Isto é, como não estava cravado, nem colado ao piso da pista, deslocáva-se... no ar.
O Chico Porreiro" bem protestava, gritava e esbracejava ameçando todos aqueles saloios que, sem categoria nem aptidões para conduzir aquelas viaturas, teimavam em ir chocar com ele. Mas a verdade é que, devido à azáfama e ao ruído ninguém o ouvia. Não o ouviam, mas viam-no! Ou, pelo menos, viam o seu carrito, já que a cadeia de choques não cessava, antes aumentara. E o pior é que havia uns manguelas que riam dele e lhe gritavam: - "Ó seu nabo! Sai do caminho! Carrega na merda do pedal!"
Bem! A pobre da Ilda chorava e chorava, cada vez mais. É que a miuda, ao ver-se envolvida naquele inferno, rodeada de carros por tudo quanto era lado, que se "abatiam" sobre o do pai dela sem dó nem piedade, foi levada a pensar que o Mundo estava todo contra ela, e que só por milagre sairia dali viva. Volvidos os 3 minutos da praxe, que para este duo foram 3 longas horas, a sirene voltava a troar, mas, desta vez, para anunciar o fim das hostilidades.
Agora, já da parte de fora do carro, o "Porreiro", vingativo como era, olhou em redor e ainda esboçou algumas tentativas para tirar desforço de alguém, de um dos muitos malteses que se predispuseram a estragar-lhe a Feira, só que eles eram todos iguais e... às dezenas. E já que, por enquanto, ainda estava inteiro, por que carga de água havia de se aleijar? Pensou e pensou bem: -"Tenho filhas para criar, portanto, o melhor é dar à sola para não mais voltar!"
Não posso garantir se ele alguma vez voltou à Feira dos Santos, mas eu, não sendo muito dado a apostas, era capaz de jurar que, tanto o meu tio "Chico Porreiro" como a prória Ilda, nunca mais nas suas vidas voltaram a pôr o cu naqueles, ou noutros, carrinhos de choque.


Para além do susto da Ilda, a tensão, o tormento e a vergonha por que tinham passado, já bastara.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Extrato Simples-Gabriela

Extrato de um capítulo do Livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", Volume II.

Estes gajos do capacete branco, que andam aqui a sugar o sangue à malta…
Era assim, que alguns elementos da Comissão de Trabalhadores tratavam os profissionais de engenharia, os desenhadores, os escriturários, e os encarregados gerais. Tudo o que fosse capacete branco, era alvo a abater.
O tipo já não teve tempo de dizer mais nada. Saltei para cima do dito palco tentando deitar as unhas ao bêbedo da Comissão. Sim, porque este gajo, que dizia estar a sofrer a sugagem de sangue, o que devia ter dito era a sugagem de vinho, já que era um daqueles que, depois de enfiar uns copos no bucho, costumava bater umas sonecas no interior da Galeria Técnica. Mas isto para dizer, que os meus dedos ainda sentiram o raspar pela camisa do fulano, só que, ato contínuo, comecei a levar porrada nas costas, daquela horda de cobardolas que me agarrou e rasgou a camisa e aos gritos de “atira-se o gajo ao rio!” Onde o gajo era eu e o rio Tejo estava ali a cerca de dez metros. Não seria muito difícil a quatro mangas pegarem em mim e mergulhar-me no Tejo. Entretanto, no meio da barafunda, deu tempo para que o comissionista zarpasse dali para fora, para nunca mais ser visto.
No dia seguinte fui chamado à Comissão para uma reunião de emergência. O que queriam eles? Que eu prometesse não retaliar com o indivíduo quando o encontrasse na obra. Eu respondi assim:
— Cá dentro, no local de trabalho, garanto que não retaliarei. Faço até de conta que não o conheço, mas quando o apanhar lá fora, parto-lhe o focinho.
Fosse como fosse, nunca mais o tipo foi trabalhar, nem eu o vi mais, nas redondezas, até hoje. Presumo que ele residia na outra banda, ali para Salvaterra, Samora Correia… não sei.
Mas a pressão da Comissão, não se esgotava aqui. Porque certo dia, por volta das cinco da tarde, o meu colega Dionísio veio avisar-me de que o meu nome estava exposto na vitrina para, conjuntamente com outros, marchar para Lisboa a fim de montar guarda à Assembleia da República, nomeadamente ao Primeiro-Ministro, Pinheiro de Azevedo. Então eu tinha de ir para as aulas no ISEL, que começavam às 19h00, e em vez disso, tinha de ir ajudar a prender o homem? Nem dava para acreditar. Mas eu não poderia aceitar aquilo, que considerei uma afronta. E, vai daí, fui ao Armazém com o intuito de chegar à fala com o dono da Comissão, Manuel Simão.
E começou o diálogo:
— Ouça lá! Quem foi o idiota que escreveu, ou mandou escrever, o meu nome na vitrina? – perguntei.
— Sabe, aquilo foi uma escolha aleatória que nada teve a ver consigo. Esses nomes foram, depois, aprovados por unanimidade. – respondeu.
— Ah foram? Então, ou você vai já a correr riscar o meu nome da lista, ou amanhã, quando eu chegar, se tudo continuar como está e, com base nisso, houver uma voz no Plenário para sanear o Caria Luís, garanto que você se vai dar mal comigo! – e continuei:
 — Então você, dono da Comissão, sabe que eu tenho que ir para as aulas e coloca o meu nome na vitrina?
— Ó senhor Caria Luís, mas eu já lhe disse como é que aquilo aconteceu, bolas! – justificou-se.
— Pois olhe, mestre Simão: eu juro pelos meus dois filhos que, se você não riscar dali o meu nome, amanhã aperto-lhe o papo! – afirmei.
E fui para Lisboa, mas para Cabo Ruivo, que era onde se situava o ISEL. Os politiqueiros, calaceiros, agitadores profissionais e outras gentes de mau porte, que fossem prender o Pinheiro de Azevedo, mas comigo não contavam. Eu tinha coisas mais úteis para fazer.
No dia seguinte, ao entrar no portão da Fábrica, deparei-me com o Dionísio que me disse:
— Eh pá, afinal, mal tinhas acabado de sair, o gajo foi logo apagar o teu nome.
É claro que fiquei mais descansado, mas caso ele aflorasse aquele assunto no Plenário, juro que lhe dava uma sova das antigas.
Mas, para espanto meu, a partir de certa altura, o comportamento da Comissão para comigo melhorou radicalmente. Eu, que estranhei aquela brusca  mudança, vim a saber pela boca de um dos membros da Comissão de Trabalhadores, o que esteve na base desse facto. Não porque esse bando de malfeitores tenha pura e simplesmente mudado de opinião acerca da minha pessoa, mas sim porque a teia em que costumavam envolver as chefias fora rompida. Rompida, mas por eles próprios, a fazer inveja a um qualquer investigador da PIDE. Foi numa tarde em que o comissionista Manuel Carvalho me pediu uma audiência no escritório. Mas antes, para enquadrar este novo cenário, convém que descreva este fulano.
Manuel Carvalho, de seu nome, com idade a rondar os cinquenta e tantos anos, residente em Vila Franca de Xira, de carpinteiro de profissão, de grande envergadura física, algum expediente acima da média e ex-emigrante na África do Sul, onde esteve cerca de trinta anos. Ele tinha regressado a Portugal havia pouco tempo, talvez por altura do 25 de abril. Assumia-se como um recém-militante do PCP, mas tentava evidenciar um certo distanciamento em relação a certas atitudes mais radicais dos camaradas. Para isso, para me convencer de que ele era diferente dos demais, para que eu lhe desse uma certa abertura, e para que não pensasse que ele era um qualquer comunista que estava ali, começou por dizer que, em Joanesbugo, onde vivia com a família, fazia uma vida um tanto ou quanto faustosa, viajando bastante, indo sempre comer fora aos fins de semana… enfim, um rosário de vida social que ele fazia questão de enaltecer. Também me disse que, aquando de uma atuação do Frank Sinatra, em Cape Town, ele e demais família, não deixaram de estar presentes, sentados nas primeiras filas. Ele de smoking, e a senhora com vestido de noite, trajes aqueles que se enquadravam nas formalidades do evento.
Feita esta introdução, mudou a agulha da conversa para me dizer que tinha estado, dois dias antes, numa reunião do Partido Comunista, com dois amigos, estabelecidos com uma sociedade no comércio de móveis, em Vila Franca de Xira e que eram, simultaneamente, meus conterrâneos. Conversa puxa conversa, e os dois sócios não deixaram de dar conta ao sr. Carvalho, que eu residia na Castanheira do Ribatejo, era cliente da loja, e que, ainda há pouco tempo atrás, lhes tinha comprado um colchão, tipo Molaflex. Seriam coisas de somenos, mas o mais importante é que me conheciam bem e, por isso mesmo, não deixaram de fazer o relato de tudo o que sabiam acerca de mim. Disseram-lhe, então, que, sendo ambos de Vale da Pinta, conheciam muito bem os meus pais e os meus sogros. Eram, eles, os valedapintenses Ângelo de Sousa e José Caria, os sócios de uma oficina e loja de mobiliário, ali junto ao Conde Barão, em Vila Franca de Xira.
O Ângelo fez questão de realçar, que era amigo íntimo do meu pai, que também era da cor, ambos eram músicos de clarinete, e que, por vezes, até tocavam juntos na Banda de Vale da Pinta. O José Caria, por sua vez, disse que, além de ser amigo do meu pai, era primo da minha sogra. Ainda no dizer deles, era tudo gente honesta e muito trabalhadora.
Eu, depois de ter escutado, atentamente, o relato daquela investigação, que mais parecia um filme de espionagem, perguntei:
— Então, sr. Manuel Carvalho, como é que você chegou à fala com esses dois meus conterrâneos acerca da minha pessoa? Ou seja: como soube que eu era de Vale da Pinta?
O homem respondeu com clareza e não escondeu que o processo utilizado passou por pedirem na Sede, que vissem no meu processo, quem eu era. Como se ali, naquela papelada, houvesse alguma coisa que abonasse ou não o meu modo de estar na vida. Foi assim, sabendo que eu era de Vale da Pinta, que ele, Manuel Carvalho, fez a ligação entre o técnico Caria Luís das Construções Técnicas e os dois comerciantes, sócios, naturais de Vale da Pinta, estabelecidos em Vila Franca de Xira e, como ele, militantes do PCP.
Mas, já que eu tive a pachorra suficiente para ouvir aquela panóplia descritiva, achei que tinha chegado a altura de inverter os papéis e, desta vez, ser o Carvalho a ouvir-me. E eu disse:
— Pelo que sei, aquilo que a Comissão fez, foi uma autêntica investigação, ao estilo da PIDE, mas isso não me afetou nem me afeta. Fique sabendo, que trabalho desde os dez anos e se quis estudar, tive de o fazer de noite. Estou, por isso, habilitado a dar lições de trabalho e produtividade a toda essa gente, onde alguns fulanos, gosmas e oportunistas, que se infiltraram nessa Comissão - que devia ser de trabalhadores - para não mais bulirem. É uma vergonha para a empresa e para todos os trabalhadores honestos, saber-se que as duas tabernas vizinhas da Fábrica, estão sempre enfeitadas com esses bêbedos que, depois de bem bebidos, vão curti-la para dentro da Galeria. E o pior, é que se algum chefe os chama à razão ou lhes ameaça cortar o tempo da borga, eles, sendo da Comissão, além de se considerarem impunes, ainda ameaçam essas chefias com saneamento.
E antes de terminar, ainda disse ao meu interlocutor:
— Veja lá você, sr. Carvalho, se um indivíduo como eu, que trabalho desde os dez anos, a minha política sempre foi o trabalho e o estudo noturno, apolítico quanto baste, ao ser confrontado e afrontado pelos mais sórdidos comportamentos por banda da Comissão, poderá, alguma vez na vida, ser comunista ou coisa que se pareça. Vocês, decerto, nunca ouviram dizer que não é com vinagre que se apanham moscas. Se isto é a tão propalada Democracia, então não quero ser democrata.
            O Manuel Carvalho, pedindo desculpa pelo tempo que me roubou, prometeu pedir uma reunião da Comissão, a fim de tentar remediar ou eliminar algumas das malfeitorias perpetradas pelos colegas.

Não sei se foi devido ao 25 de novembro de 1975 ou se pela história que acabei de contar, que as atitudes da Comissão para comigo mudaram radicalmente, para melhor, já se vê. Não fora o rol abonatório do Ângelo de Sousa e do José Caria (Zé da Vitorina), e não sei se a paz se instalaria naquela obra de 480 fulanos, em que metade deles não trabalhava.