Extrato de um capítulo do Livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", Volume II.
—
Estes
gajos do capacete branco, que andam aqui a sugar o sangue à malta…
Era
assim, que alguns elementos da Comissão de Trabalhadores tratavam os
profissionais de engenharia, os desenhadores, os escriturários, e os
encarregados gerais. Tudo o que fosse capacete branco, era alvo a abater.
O
tipo já não teve tempo de dizer mais nada. Saltei para cima do dito palco
tentando deitar as unhas ao bêbedo da Comissão. Sim, porque este gajo, que dizia estar a sofrer a sugagem
de sangue, o que devia ter dito era a sugagem de vinho, já que era um daqueles
que, depois de enfiar uns copos no bucho,
costumava bater umas sonecas no interior da Galeria Técnica. Mas isto para
dizer, que os meus dedos ainda sentiram o raspar pela camisa do fulano, só que,
ato contínuo, comecei a levar porrada
nas costas, daquela horda de cobardolas que me agarrou e rasgou a camisa e aos
gritos de “atira-se o gajo ao rio!” Onde o gajo era eu e o rio Tejo
estava ali a cerca de dez metros. Não seria muito difícil a quatro mangas pegarem em mim e mergulhar-me no
Tejo. Entretanto, no meio da barafunda, deu tempo para que o comissionista zarpasse dali para fora,
para nunca mais ser visto.
No
dia seguinte fui chamado à Comissão para uma reunião de emergência. O que
queriam eles? Que eu prometesse não retaliar com o indivíduo quando o
encontrasse na obra. Eu respondi assim:
—
Cá dentro, no local de trabalho, garanto que não retaliarei. Faço até de conta
que não o conheço, mas quando o apanhar lá fora, parto-lhe o focinho.
Fosse
como fosse, nunca mais o tipo foi trabalhar, nem eu o vi mais, nas redondezas, até
hoje. Presumo que ele residia na outra banda, ali para Salvaterra, Samora
Correia… não sei.
Mas
a pressão da Comissão, não se esgotava aqui. Porque certo dia, por volta das
cinco da tarde, o meu colega Dionísio veio avisar-me de que o meu nome estava
exposto na vitrina para, conjuntamente com outros, marchar para Lisboa a fim de
montar
guarda à Assembleia da República, nomeadamente ao Primeiro-Ministro,
Pinheiro de Azevedo. Então eu tinha de ir para as aulas no ISEL, que começavam
às 19h00, e em vez disso, tinha de ir ajudar a prender o homem? Nem dava para
acreditar. Mas eu não poderia aceitar aquilo, que considerei uma afronta. E,
vai daí, fui ao Armazém com o intuito de chegar à fala com o dono da Comissão, Manuel Simão.
E
começou o diálogo:
—
Ouça lá! Quem foi o idiota que escreveu, ou mandou escrever, o meu nome na
vitrina? – perguntei.
—
Sabe, aquilo foi uma escolha aleatória que nada teve a ver consigo. Esses nomes
foram, depois, aprovados por unanimidade. – respondeu.
—
Ah foram? Então, ou você vai já a correr riscar o meu nome da lista, ou amanhã,
quando eu chegar, se tudo continuar como está e, com base nisso, houver uma voz
no Plenário para sanear o Caria Luís, garanto que você se vai dar mal comigo! –
e continuei:
— Então você, dono da Comissão, sabe que eu tenho que ir para as aulas e coloca o
meu nome na vitrina?
—
Ó senhor Caria Luís, mas eu já lhe disse como é que aquilo aconteceu, bolas! –
justificou-se.
—
Pois olhe, mestre Simão: eu juro
pelos meus dois filhos que, se você não riscar dali o meu nome, amanhã
aperto-lhe o papo! – afirmei.
E
fui para Lisboa, mas para Cabo Ruivo, que era onde se situava o ISEL. Os
politiqueiros, calaceiros, agitadores profissionais e outras gentes de mau
porte, que fossem prender o Pinheiro de Azevedo, mas comigo não contavam. Eu
tinha coisas mais úteis para fazer.
No
dia seguinte, ao entrar no portão da Fábrica, deparei-me com o Dionísio que me
disse:
—
Eh pá, afinal, mal tinhas acabado de sair, o gajo foi logo apagar o teu nome.
É
claro que fiquei mais descansado, mas caso ele aflorasse aquele assunto no
Plenário, juro que lhe dava uma sova das antigas.
Mas,
para espanto meu, a partir de certa altura, o comportamento da Comissão para
comigo melhorou radicalmente. Eu, que estranhei aquela brusca mudança, vim a saber pela boca de um dos
membros da Comissão de Trabalhadores, o que esteve na base desse facto. Não porque
esse bando de malfeitores tenha pura e simplesmente mudado de opinião acerca da
minha pessoa, mas sim porque a teia em que costumavam envolver as chefias fora
rompida. Rompida, mas por eles próprios, a fazer inveja a um qualquer investigador
da PIDE. Foi numa tarde em que o comissionista
Manuel Carvalho me pediu uma audiência no escritório. Mas antes, para enquadrar
este novo cenário, convém que descreva este fulano.
Manuel
Carvalho, de seu nome, com idade a rondar os cinquenta e tantos anos, residente
em Vila Franca de Xira, de carpinteiro de profissão, de grande envergadura
física, algum expediente acima da média e ex-emigrante na África do Sul, onde
esteve cerca de trinta anos. Ele tinha regressado a Portugal havia pouco tempo,
talvez por altura do 25 de abril. Assumia-se como um recém-militante do PCP, mas tentava evidenciar um certo
distanciamento em relação a certas atitudes mais radicais dos camaradas. Para
isso, para me convencer de que ele era diferente dos demais, para que eu lhe
desse uma certa abertura, e para que não pensasse que ele era um qualquer comunista
que estava ali, começou por dizer que, em Joanesbugo, onde vivia com a família,
fazia uma vida um tanto ou quanto faustosa, viajando bastante, indo sempre
comer fora aos fins de semana… enfim, um rosário de vida social que ele fazia
questão de enaltecer. Também me disse que, aquando de uma atuação do Frank Sinatra,
em Cape Town, ele e demais família, não deixaram de estar presentes, sentados
nas primeiras filas. Ele de smoking, e a senhora com vestido de noite, trajes
aqueles que se enquadravam nas formalidades do evento.
Feita
esta introdução, mudou a agulha da
conversa para me dizer que tinha estado, dois dias antes, numa reunião do
Partido Comunista, com dois amigos, estabelecidos com uma sociedade no comércio
de móveis, em Vila Franca de Xira e que eram, simultaneamente, meus conterrâneos.
Conversa puxa conversa, e os dois sócios não deixaram de dar conta ao sr. Carvalho,
que eu residia na Castanheira do Ribatejo, era cliente da loja, e que, ainda há
pouco tempo atrás, lhes tinha comprado um colchão, tipo Molaflex. Seriam coisas de somenos, mas o mais importante é que me
conheciam bem e, por isso mesmo, não deixaram de fazer o relato de tudo o que
sabiam acerca de mim. Disseram-lhe, então, que, sendo ambos de Vale da Pinta,
conheciam muito bem os meus pais e os meus sogros. Eram, eles, os valedapintenses
Ângelo de Sousa e José Caria, os sócios de uma oficina e loja de mobiliário, ali
junto ao Conde Barão, em Vila Franca de Xira.
O
Ângelo fez questão de realçar, que era amigo íntimo do meu pai, que também era da cor, ambos eram músicos de clarinete,
e que, por vezes, até tocavam juntos na Banda de Vale da Pinta. O José Caria,
por sua vez, disse que, além de ser amigo do meu pai, era primo da minha sogra.
Ainda no dizer deles, era tudo gente honesta e muito trabalhadora.
Eu, depois de ter
escutado, atentamente, o relato daquela investigação, que mais parecia um filme
de espionagem, perguntei:
—
Então, sr. Manuel Carvalho, como é que você chegou à fala com esses dois meus
conterrâneos acerca da minha pessoa? Ou seja: como soube que eu era de Vale da
Pinta?
O
homem respondeu com clareza e não escondeu que o processo utilizado passou por
pedirem na Sede, que vissem no meu processo, quem eu era. Como se ali, naquela
papelada, houvesse alguma coisa que abonasse ou não o meu modo de estar na
vida. Foi assim, sabendo que eu era de Vale da Pinta, que ele, Manuel Carvalho,
fez a ligação entre o técnico Caria Luís das Construções Técnicas e os dois
comerciantes, sócios, naturais de Vale da Pinta, estabelecidos em Vila Franca
de Xira e, como ele, militantes do PCP.
Mas,
já que eu tive a pachorra suficiente para ouvir aquela panóplia descritiva,
achei que tinha chegado a altura de inverter os papéis e, desta vez, ser o
Carvalho a ouvir-me. E eu disse:
—
Pelo que sei, aquilo que a Comissão fez, foi uma autêntica investigação, ao
estilo da PIDE, mas isso não me afetou nem me afeta. Fique sabendo, que trabalho
desde os dez anos e se quis estudar, tive de o fazer de noite. Estou, por isso,
habilitado a dar lições de trabalho e produtividade a toda essa gente, onde
alguns fulanos, gosmas e oportunistas, que se infiltraram nessa Comissão - que
devia ser de trabalhadores - para não mais bulirem. É uma vergonha para a
empresa e para todos os trabalhadores honestos, saber-se que as duas tabernas
vizinhas da Fábrica, estão sempre enfeitadas
com esses bêbedos que, depois de bem bebidos, vão curti-la para dentro da
Galeria. E o pior, é que se algum chefe os chama à razão ou lhes ameaça cortar
o tempo da borga, eles, sendo da
Comissão, além de se considerarem impunes, ainda ameaçam essas chefias com saneamento.
E
antes de terminar, ainda disse ao meu interlocutor:
—
Veja lá você, sr. Carvalho, se um indivíduo como eu, que trabalho desde os dez
anos, a minha política sempre foi o trabalho e o estudo noturno, apolítico quanto
baste, ao ser confrontado e afrontado pelos mais sórdidos comportamentos por
banda da Comissão, poderá, alguma vez na vida, ser comunista ou coisa que se
pareça. Vocês, decerto, nunca ouviram dizer que não é com vinagre que se apanham
moscas. Se isto é a tão propalada Democracia, então não quero ser
democrata.
O Manuel Carvalho, pedindo desculpa
pelo tempo que me roubou, prometeu pedir uma reunião da Comissão, a fim de
tentar remediar ou eliminar algumas das malfeitorias perpetradas pelos colegas.
Não
sei se foi devido ao 25 de novembro de 1975 ou se pela história que acabei de
contar, que as atitudes da Comissão para comigo mudaram radicalmente, para
melhor, já se vê. Não fora o rol abonatório do Ângelo de Sousa e do José Caria (Zé da Vitorina), e não sei se a paz se
instalaria naquela obra de 480 fulanos, em que metade deles não trabalhava.
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