domingo, 30 de junho de 2013

CENA IV - PERA... NÃO SÃO PERAS


Cena IV - Nas C. TÉCNICAS – Carregado (1967)

 

 

- Mas pera… não são peras -

Que numa obra gigantesca como esta, foram aplicadas grandes quantidades de cofragem, não será grande novidade, agora não zelar pelo seu manuseamento e conservação, é que não cabe na cabeça de ninguém. Quando se orçamentavam e estudavam os moldes de madeira para tal fim, contava-se, para aqueles, com um determinado número de aplicações de modo a rentabilizar cada peça e conjunto. Porém, devido a uma confusão havida com uma troca de pera e peras, aquele desiderato não foi observado.

Para fazer descofragens, recorria-se, sempre que possível, a equipas de betonagem, quando estas tinham os normais intervalos entre aquelas tarefas. Desta vez, aquela operação estava a ser desempenhada pela equipa do capataz Raul Baldaia. A altura entre as paredes a descofrar e o chão era razoável, talvez uns dez metros, o que, numa situação destas, mais que aconselhável era premente que os moldes fossem descidos à grua.

O capataz, que estava no chão, ia dar as suas ordens no sentido de começar as tarefas. Digo as tarefas, porque metade da equipa estava no interior para descofrar um teto de tábuas velhas, já com mais de três aplicações, a outra metade estava por fora, na fachada, para descofrar vigas e pilares, feitas com moldes novos.

O Baldaia, no sentido de fazer lembrar aos seus subordinados que era ele quem mandava ali, gritou para um certo fulano, assim:

— Ó das peras, bota abaixo! Bota p’ró chão, carago!

Um pedreiro, homem do Norte, que usava pera e estava na descofragem pelo exterior, largou os moldes de imediato, que caíram da altura de dez metros, tendo-se desfeito no chão, em sarrafos. Imagine-se, pois, qual não foi o espanto do capataz quando viu painéis e mais painéis, praticamente novos, a caírem, que nem tordos, no meio do chão…

 Então, para pôr cobro àquela razia, e furioso pelo que considerou ser um autêntico crime de lesa-empresa, o Baldaia berrou para este peras, dizendo:

— Eiiiiia! O que é que estais a fazer, ó seu grande filho da p***?

O pedreiro da pera, que tinha interpretado a ordem dada como válida, retorquiu:

— Mas então, vossemecê não me disse para botar abaixo, carago?

Diz o Baldaia:

— Não era contigo, carago. Era com o gajo do saco das peras!...

Nestes meios das obras, como noutros, se calhar, há sempre uns engraxadores que, para estarem nas boas graças do chefe, vão - lhe dando umas coisinhas, umas prendas. Ali na zona do Carregado e Alenquer, devido ao facto de muita gente ter um bocadito de horta ou um pomar, tinham o hábito de ofertar fruta, especialmente aos chefes. Mas este operário, para que não o viessem a acusar de engraxador, tinha feito a coisa no máximo segredo. E não fora o incidente dos painéis e ninguém saberia que ele era o bajulador das peras.

Conclusão: pera, não são peras, e, por isso, devido ao trocadilho, além do prejuízo dos moldes que as Construções Técnicas tiveram que suportar, também se descobriu que havia no seio da equipa o engraxador das peras. De um valente saco de peras.
 

 
 Obs. Extraído do VOL. II de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA"

segunda-feira, 17 de junho de 2013

EM MARROCOS (1976) - CENA III - A CADA CABEÇA SEU CRISMA

Markovic o "Pedre"
A CADA CABEÇA SEU CRISMA
     De há uns anos a esta parte, com especial relevância a partir da Guerra dos Balcãs, que a chamada Europa Ocidental tem vindo a assistir à crescente importação de jogadores de futebol oriundos da ex- Jugoslávia. Em Portugal, por razões óbvias e, por isso mesmo - não tanto como noutros mercados com "lecas" mais sonantes - também tem tido a sua quota-parte no que ao "acolhimento" das famílias "ic" diz respeito.
     No Benfica, mesmo que os já idos Filipovic e Drulovic tenham passado à história, temos o atual Matic I e os recém-chegados ou vindouros Matic II; Djuricic; Markovic e Sulejmani(c), não restam dúvidas de que, tanto relatores como comentadores vão ter imensa dificuldade quando, em pleno calor dos relatos e análises do todo ou parte, tiverem que pronunciar tais nomes. Certamente, que numa posição mais cómoda estará Jorge Jesus. Este, acusado de ser uma espécie de "língua de trapos" devido à má qualidade linguística que patenteia, especialmente no que concerne às entrevistas dos media, julgo que não terá qualquer handicap em lidar com essa situação, ao tentar identificar os seus pupilos ou a estes se fazer entender.
     E o que pensam vocês, do que me habilita a falar assim? Não sabem, pois não? Mas sei eu! E digo isto, porque já não sou nenhum novato nas andanças linguísticas, em especial no que concerne à difícil "Torre de Babel" que, como se sabe, é o simbolismo maior na área da Construção Civil. 
     A narrativa que se segue vivi-a eu, ali ao vivo, em plena obra, durante a construção da Fábrica de Cimento de Oujda, em Marrocos. E o que muito dessa saga retive e aprendi, não pensem que foi com algum Iman, um el-Caíde, algum Kalifa e, muito menos, com um qualquer Ayatollah, mas sim com um português. Sim. Com um português, mas analfabeto em último grau. Ainda o José Saramago não sonhava compor aquele metaforismo que, referindo-se ao seu avô, diz que: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida, não sabia ler nem escrever", e eu já o sentira, pese embora num outro contexto, com uma outra personagem e num outro continente. Mas como tudo o que tem lógica tem explicação, aqui vai a raiz de tudo o que acabei de frasear.
     O cenário estava montado. A rodear o centro de gravidade onde eu me encontrava, e a limitar a extensa planície de terras áridas e avermelhadas, ao fundo daquilo que a nossa vista alcançava, jazia uma extensa cordilheira de montanhas: o médio Atlas. Era nesse centro de gravidade, a que aludi, que acabava de ser implantado um complexo industrial designado por C.I.O.R., ou seja a "Cimenterie de l'Oriental". Esta situava-se a 15 km da vila de El-Aioun e a cerca de 40 km da cidade de Oujda. Era um grande empreendimento, cuja construção estava a cargo das Construções Técnicas, SARL.
     Devido à extensão da obra, foi esta dividida em três zonas geográficas distintas: zona A; zona B e zona C. O que vou relatar, tem o seu epicentro precisamente na zona A.
     Tinha a obra entrado numa fase em que as Fundações estavam praticamente concluídas. Seguia-se agora a Superestrutura que, devido à sua filosofia geométrica, era um tanto mais complexa. Tomando por base uma equipa de Betonagem, cujos operários eram, na sua maioria, magrebinos, em que muitos deles nem sequer sabiam uma única palavra de francês, como poderia o seu chefe (português) controlar e ordenar cada operação e movimento com um mínimo de eficácia? Se ele nem ao menos conseguia soletrar, pronunciar ou decorar cada um daqueles nomes esquisitos para burro, que um dia lhes foram entregues para compor a sua equipa... como iria o capataz, Mário Russo de seu nome, sair-se daquele imbróglio? É que o Mário era analfabeto a 100%, mas, pelo que a seguir se viu, estava longe de ser estúpido. Que solução adotou ele então? Pois, já que ali quem mandava era ele, convocou todo o grupo através de uma estranha sinalética, e com eles reuniu. Dirigindo-se a todos e a cada qual, ditou as suas leis. Sem rodeios, foi direto ao assunto. Formou-os em fila indiana, e sempre que a cada marroquino era perguntado o nome, o Mário Russo, em tom grave e de dedo em riste, ordenava: - "Toi, non Mustaphá, toi, agora, Pedro! Toi, non Rashid, toi, agora, Zé Manel! Toi, non Mohammed, toi, agora, Jaquim..."- E, um a um, lá foi crismando aqueles 12 bárbaros infiéis, contra tudo o que de mais sagrado eles tinham, que era a religião muçulmana e o seu Alá.
     Em jeito de conclusão, direi que o Jorge Jesus, que pode ter um certo grau de iliteracia mas não é burro, irá, com toda a certeza, proceder ao Crisma daqueles rapazes que, embora venham de um país de raiz eminentemente cristã, terão que sujeitar-se a passar pelas malhas do "rebatismo" pela mão de Jesus. Assim, só escapa o já conhecido Matic I, porque o Matic II será, por exemplo, o Jorze; o Djuricic será o Atónhe; o Markovic será o Pedre, e para o Sulejmani(c) será adotado o nome de Jaquim. E se, por acaso, mais vierem, mais crismas ocorrerão. Sem nome percetível e pronunciável é que ninguém fica.
     Posto isto, nem me passa pela cabeça que o JJ não arranje esta, ou uma outra qualquer mnemónica para, a exemplo do que fez o Mário Russo, decorar com maior facilidade os novos nomes  dos seus novos pupilos. Eu fazia-o!


Autoria de José Caria Luís

 Nota: Texto escrito com base no Novo Acordo Ortográfico