Eles
eram tantos, que nem sei por onde começar. Porém, nem todos aqueles que contribuíram
para a lista dos motes, que serviram de base a certas cenas foram dignos de
figurar no top. Dentro de uma certa lógica e por uma questão de espaço e
racionalidade, só os casos mais emblemáticos serão referidos.
Devido ao facto de o nosso amigo Sete Línguas ter sido referenciado como o Pontífice dos excêntricos, será ele a abrir o desfile.
1 -
O Sete Línguas comprou uma “bomba” –
O
Silveira, vulgo Sete Línguas, andava doido para comprar um carro. Durante vários fins-de-semana
palmilhou por El Aioun, Taza e Oujda, correu Ceca e Meca, mas, como era esquisito, não havia maneira de
encontrar a viatura com que sonhava, havia um mês. Quando menos esperava,
chegou-lhe aos ouvidos a notícia, que o nosso mecânico Rachid Driss sabia de um
carro que estava à venda num stand de Oujda, que era uma autêntica bomba.
O Sete Línguas correu à oficina,
entabulou conversa com o Rachid e inteirou-se dos pormenores da viatura. O que
ouviu da boca do outro encheu-o de entusiasmo. De tal modo, que pediu dispensa
no serviço, arrastou consigo um chauffeur
de ocasião, arranjou quem lhe desse boleia e depressa chegou ao stand. O que se
passou em Oujda, desconheço, mas sei que o Sete
Línguas apareceu na obra com um Opel Record 1900 azul-cinza, que era uma
autêntica bomba, como ele tanto gostava de evidenciar.
Lembro-me
que era fim de tarde, quando o Silveira irrompeu pelo meu escritório adentro e,
com o ar mais feliz deste mundo, informou-me:
—
Ó sr. Caria, quer ver a tal bomba de que lhe falei há um bocado?
—
Mas que carro é? E onde é que ele está? – perguntei.
—
Está atrás da carpintaria! – respondeu.
Era
realmente um carro grande, robusto, tipo carro americano, mas estava estacionado
junto de um monte de desperdício de madeiras. Por isso, disse assim ao Sete Línguas:
—
Ó Silveira, você coloca o carro encostado à serradura e ao lixo? Olhe que os gajos da oficina, podem deitar fogo à bomba!
– alertei.
O
tipo ficou à rasca e pediu ao Agostinho da carpintaria para que lho desviasse
daquele perigoso local. O que este fez.
Mas
então, dei uma olhadela ao carro e, sem perguntar nada, fiquei a pensar que
seria carro para ter de uns oito a dez anos.
Ele
não tinha carta de condução, mas isso, para ele, não constituía problema, já
que tratou de convencer o carpinteiro Agostinho, no sentido de lhe dar uma
ajuda na experimentação da bomba. O trajeto por ele escolhido
era ir a El Aioun, onde residia, e regressar à obra. Seria uma pequena viagem
de vinte e quatro quilómetros, mas já daria para perceber se a tal bomba
se portava bem e ficar a saber se tinha, ou não, feito um bom negócio.
No
fim do dia de trabalho, montaram-se ambos no carro e arrancaram rumo àquela
povoação. À cena de os ver entrar na viatura, ainda eu assisti, depois, nesse
mesmo dia, já não soube de mais nada.
Na
manhã do dia seguinte, entrou o Sete
Línguas no meu escritório e desabafou assim:
—
Ó sr. Caria Luís, estou desgraçado! Então não é que o sr. Agostinho ia dando
cabo da minha máquina?
—
Ó Silveira, não me diga tal! Mas conte lá, homem!
E
o nosso amigo exemplificava, o melhor que podia, as peripécias da
experimentação da sua bomba, na ida e vinda a El Aioun.
—
Olhe senhor: ele, já ali na saída do estaleiro, enquanto andava à procura das
mudanças, fazia-o com tal ímpeto que eu já estava a ver quando é que a alavanca
saltava do sítio. Depois, na entrada para a Estrada Nacional, não conseguindo meter
a primeira, andava, desandava e rodava com a alavanca como eu nunca vi.
Interrompi
o seu discurso para abreviar a cena e perguntei:
—
Ó Silveira, mas na estrada reta, sem inclinações e com pouco trânsito, sempre
as coisas melhoraram, não?
—
Não senhor! Não melhoraram nada! Ainda foi pior, porque ele, para me fazer ver
como é que se conduzia, pôs-se a fazer experiências, de modo brusco, de como
reduzir e aumentar a velocidade, que eu, embora me custasse bastante, fui
obrigado a mandá-lo parar com aquela maneira pouco ortodoxa de conduzir, se
não, era melhor que voltasse para trás.
—
Ó Silveira, mas o Agostinho não deve ter gostado muito dessa sua atitude, pois
não? Ele, ao fim e ao cabo, foi fazer-lhe um favor…
—
Ele não gostou, mas teve que as ouvir. Era o que mais faltava: um carro em bom
estado, que me disseram ter sido de um médico, andar nas mãos de gente desta.
Eu, no fim, até lhe agradeci pelo facto de ter ido comigo, mas também lhe disse
que nunca mais ele conduziria este carro.
Eu,
em jeito de desafio, comentei:
—
Você não sabe, mas eu digo-lhe: o Agostinho tem carro, e conduz há mais de dez
anos. Opel é a marca da carrinha dele, portanto dá impressão que você é capaz
de estar a exagerar um bocadinho.
—
Ó sr. Caria, pode acreditar em mim, que sou uma pessoa séria. Palavra de honra
que, de cada vez que ele mexia nas mudanças, saltava-me uma afronta no peito
que eu mal podia respirar. O senhor Agostinho, transpirava e, ora deitava a
língua de fora, ora mordia os lábios… e, ao mesmo tempo, emitia sons do género: brrrruuum, brrrruuum!... O senhor nem faz ideia.
Bem,
perante isto, o Sete Línguas tinha de
se virar para outro chauffeur. Um que mostrasse ser digno de lidar, de maneira
mais suave, com aquela alavanca de mudanças.
Na
verdade ele arranjou um outro fulano para lhe conduzir a viatura, mas parece-me
que pior foi a emenda que o soneto. O
escolhido para a função de andar a passear o Silveira pelos aglomerados
populacionais e estradas de Marrocos, foi o capataz Joaquim Pereira dos Santos.
Este cromo - nado e criado em Guilhabreu, Vila do Conde - em termos de
excentricidade, ainda superava o Sete
Línguas. Além disso, era uma esponja muito razoável. Num país onde a venda
livre e o consumo de bebidas alcoólicas estavam proibidos, ele era um autêntico
outsider.
Por mais de uma vez tive de o castigar, suspendendo-o do trabalho, por me aparecer
bêbedo, a tresandar a álcool, logo pela manhã. Eram bebedeiras de bagaço - que
ia de Portugal - e que, durante a noite, não tinha havido tempo para as curtir.