quinta-feira, 26 de março de 2015

Séc. XX - anos 76/78 - Portugueses em Marrocos

Medina de OUJDA
 – Os excêntricos
  Eles eram tantos, que nem sei por onde começar. Porém, nem todos aqueles que contribuíram para a lista dos motes, que serviram de base a certas cenas foram dignos de figurar no top. Dentro de uma certa lógica e por uma questão de espaço e racionalidade, só os casos mais emblemáticos serão referidos.
Devido ao facto de o nosso amigo Sete Línguas ter sido referenciado como o Pontífice dos excêntricos, será ele a abrir o desfile.

1 - O Sete Línguas comprou uma “bomba” –
O Silveira, vulgo Sete Línguas, andava doido para comprar um carro. Durante vários fins-de-semana palmilhou por El Aioun, Taza e Oujda, correu Ceca e Meca, mas, como era esquisito, não havia maneira de encontrar a viatura com que sonhava, havia um mês. Quando menos esperava, chegou-lhe aos ouvidos a notícia, que o nosso mecânico Rachid Driss sabia de um carro que estava à venda num stand de Oujda, que era uma autêntica bomba. O Sete Línguas correu à oficina, entabulou conversa com o Rachid e inteirou-se dos pormenores da viatura. O que ouviu da boca do outro encheu-o de entusiasmo. De tal modo, que pediu dispensa no serviço, arrastou consigo um chauffeur de ocasião, arranjou quem lhe desse boleia e depressa chegou ao stand. O que se passou em Oujda, desconheço, mas sei que o Sete Línguas apareceu na obra com um Opel Record 1900 azul-cinza, que era uma autêntica bomba, como ele tanto gostava de evidenciar.
Lembro-me que era fim de tarde, quando o Silveira irrompeu pelo meu escritório adentro e, com o ar mais feliz deste mundo, informou-me:
— Ó sr. Caria, quer ver a tal bomba de que lhe falei há um bocado?
— Mas que carro é? E onde é que ele está? – perguntei.
— Está atrás da carpintaria! – respondeu.
Era realmente um carro grande, robusto, tipo carro americano, mas estava estacionado junto de um monte de desperdício de madeiras. Por isso, disse assim ao Sete Línguas:
— Ó Silveira, você coloca o carro encostado à serradura e ao lixo? Olhe que os gajos da oficina, podem deitar fogo à bomba! – alertei.
O tipo ficou à rasca e pediu ao Agostinho da carpintaria para que lho desviasse daquele perigoso local. O que este fez.
Mas então, dei uma olhadela ao carro e, sem perguntar nada, fiquei a pensar que seria carro para ter de uns oito a dez anos.
Ele não tinha carta de condução, mas isso, para ele, não constituía problema, já que tratou de convencer o carpinteiro Agostinho, no sentido de lhe dar uma ajuda na experimentação da bomba. O trajeto por ele escolhido era ir a El Aioun, onde residia, e regressar à obra. Seria uma pequena viagem de vinte e quatro quilómetros, mas já daria para perceber se a tal bomba se portava bem e ficar a saber se tinha, ou não, feito um bom negócio.
No fim do dia de trabalho, montaram-se ambos no carro e arrancaram rumo àquela povoação. À cena de os ver entrar na viatura, ainda eu assisti, depois, nesse mesmo dia, já não soube de mais nada.
Na manhã do dia seguinte, entrou o Sete Línguas no meu escritório e desabafou assim:
— Ó sr. Caria Luís, estou desgraçado! Então não é que o sr. Agostinho ia dando cabo da minha máquina?
— Ó Silveira, não me diga tal! Mas conte lá, homem!
E o nosso amigo exemplificava, o melhor que podia, as peripécias da experimentação da sua bomba, na ida e vinda a El Aioun.
— Olhe senhor: ele, já ali na saída do estaleiro, enquanto andava à procura das mudanças, fazia-o com tal ímpeto que eu já estava a ver quando é que a alavanca saltava do sítio. Depois, na entrada para a Estrada Nacional, não conseguindo meter a primeira, andava, desandava e rodava com a alavanca como eu nunca vi.
Interrompi o seu discurso para abreviar a cena e perguntei:
— Ó Silveira, mas na estrada reta, sem inclinações e com pouco trânsito, sempre as coisas melhoraram, não?
— Não senhor! Não melhoraram nada! Ainda foi pior, porque ele, para me fazer ver como é que se conduzia, pôs-se a fazer experiências, de modo brusco, de como reduzir e aumentar a velocidade, que eu, embora me custasse bastante, fui obrigado a mandá-lo parar com aquela maneira pouco ortodoxa de conduzir, se não, era melhor que voltasse para trás.
— Ó Silveira, mas o Agostinho não deve ter gostado muito dessa sua atitude, pois não? Ele, ao fim e ao cabo, foi fazer-lhe um favor…
— Ele não gostou, mas teve que as ouvir. Era o que mais faltava: um carro em bom estado, que me disseram ter sido de um médico, andar nas mãos de gente desta. Eu, no fim, até lhe agradeci pelo facto de ter ido comigo, mas também lhe disse que nunca mais ele conduziria este carro.
Eu, em jeito de desafio, comentei:
— Você não sabe, mas eu digo-lhe: o Agostinho tem carro, e conduz há mais de dez anos. Opel é a marca da carrinha dele, portanto dá impressão que você é capaz de estar a exagerar um bocadinho.
— Ó sr. Caria, pode acreditar em mim, que sou uma pessoa séria. Palavra de honra que, de cada vez que ele mexia nas mudanças, saltava-me uma afronta no peito que eu mal podia respirar. O senhor Agostinho, transpirava e, ora deitava a língua de fora, ora mordia os lábios… e, ao mesmo tempo, emitia sons do género: brrrruuum, brrrruuum!... O senhor nem faz ideia.
Bem, perante isto, o Sete Línguas tinha de se virar para outro chauffeur. Um que mostrasse ser digno de lidar, de maneira mais suave, com aquela alavanca de mudanças.

Na verdade ele arranjou um outro fulano para lhe conduzir a viatura, mas parece-me que pior foi a emenda que o soneto. O escolhido para a função de andar a passear o Silveira pelos aglomerados populacionais e estradas de Marrocos, foi o capataz Joaquim Pereira dos Santos. Este cromo - nado e criado em Guilhabreu, Vila do Conde - em termos de excentricidade, ainda superava o Sete Línguas. Além disso, era uma esponja muito razoável. Num país onde a venda livre e o consumo de bebidas alcoólicas estavam proibidos, ele era um autêntico outsider. Por mais de uma vez tive de o castigar, suspendendo-o do trabalho, por me aparecer bêbedo, a tresandar a álcool, logo pela manhã. Eram bebedeiras de bagaço - que ia de Portugal - e que, durante a noite, não tinha havido tempo para as curtir.

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