domingo, 13 de outubro de 2013

Cena XIV - MARROCOS - No Reino do Carlos Silva

- Uma burra consorte, mas sem sorte -

Quem não esteve nesta obra da Cimenteira de Oujda, em Marrocos, não fará a mais pequena ideia das boas condições que os alojados tinham no aldeamento. Eram grupos de blocos separados, construídos em alvenaria, rebocadas e pintadas de branco, com instalações sanitárias anexas e condignas, onde se descansava razoavelmente bem.

Havia duas tipologias: quartos duplos e individuais, conforme o segmento e estrato profissional. Mas, pelo que vi, em qualquer deles, as condições eram boas. Num compartimento duplo, uma pessoa terá, ou não, de se sujeitar à maneira de ser ou estar do parceiro, mas no caso do tipo simples, cada utente fará o que lhe der na real gana. Tanto na escolha, como na disposição dos quadros, posters ou calendários nas paredes, ou ainda os tapetes, carpetes ou peles, dispostos pelo chão, só ao locatário diz respeito.

Sabemos que, entre tanta gente, há de uns e de outros: há quem se esmere com a apresentação da cama no que concerne à dobra de uma manta ou do lençol, e há outros que, para eles, tanto se lhes dá, como se lhes deu. Prova disso, e disse quem sabia, que o Carlos Silva, técnico assistente de gruas, colocava tal minúcia na arrumação e exposição das coisas, que, desde a cama, ao armário, malas, bibelôs e tapete, tudo estava milimetricamente disposto. Ele era um metódico, o que lhe conferia um porte algo cerimonioso. Isso causava uma certa inveja a algumas pessoas mais perversas. E como lia muito, especialmente livros, e usava barba, crescida, esses maldizentes alcunhavam-no de pseudo-intelectual.

O Carlos Silva, tal como muitos outros, gostava de passar um bocadinho do serão no Bar. Ora a ler, ora a jogar bilhar, desde que os parceiros fossem indivíduos de uma certa linhagem, ele alinhava. E foi depois de ter lido, jogado e convivido, que saiu do Bar e caminhou para o seu aprazível quarto, onde o esperava uma cama fofinha e um tapete de lã de carneiro, tão suave que, ao pisá-lo, imaginava estar sobre nuvens.

O Carlos meteu a chave à porta e, mal esta se abriu, o que viu nem dava para acreditar. Ele ficou estático, quedo e mudo com o espetáculo (triste) que se apresentava diante dos seus olhos. Em pose artística (?), olhando na direção da porta, pisando o já amarfanhado tapete e exibindo um letreiro na testa, esperava-o uma linda e altiva burra, que o mirava de alto a baixo.

Essa mensagem de amor, escrita sobre cartolina branca, com tinta preta, dizia:

ENTRA, QUERIDO!


Alguém, malfazejo ou libertino quanto baste, terá escrito aquela provocatória frase, pondo na testa da burra o que a sua boca não dissera: à revelia, portanto.

Agora, para retirar o animal do quarto é que foram elas: o Carlos Silva bem chamava, acenando-lhe no sentido da saída, mas ela é que não arrancava dali. Confortavelmente instalada, com as patas em cima do tapete de lã, estava agora a burra para sair do quarto e expor-se ao ar frio da noite, com as patas no chão frio. Com isso, o animal até podia apanhar um resfriamento. Bem, mas a cena não podia durar toda a noite. E o Carlos não teve outro remédio senão retornar ao Bar e trazer consigo três maduros que, ainda assim, tiveram imensa dificuldade em convencer a burra a sair dos aposentos, onde ela se sentia tão bem. Tivesse ocorrido ao Carlos Silva a lembrança de se deslocar ao refeitório em demanda de um molho de cenouras, e o problema tinha acabado tão depressa como começara.

Agora, era dar um jeito à cama e limpar os bonicos[1] de cima da pele de cordeiro, porque o pedido de demissão, a apresentar ao engº Farinha, ficava para a manhã do dia seguinte.

Como rescaldo da saga, o pedido não foi aceite, mas o autor da gracinha foi descoberto. E quem mais havia de ser, se não o chanfrado do Nogueira, manobrador de gruas e da bomba Schwing!?

Mas o que importa é que o Carlos Silva ficou. Depois, era só arranjar um pouco de estofo e poder de encaixe para aparar as piadas dos gozões.
Carlos, onde quer que estejas, aceita, em meu nome, um abraço do Grupo C.T. 


Texto extraído do livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA" Vol. II



[1] Excrementos de animal asinino e não só

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