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Uma burra consorte, mas sem sorte -
Quem
não esteve nesta obra da Cimenteira de Oujda, em Marrocos, não fará a mais pequena ideia das boas condições que os alojados
tinham no aldeamento. Eram grupos de blocos separados, construídos em
alvenaria, rebocadas e pintadas de branco, com instalações sanitárias anexas e
condignas, onde se descansava razoavelmente bem.
Havia
duas tipologias: quartos duplos e individuais, conforme o segmento e estrato
profissional. Mas, pelo que vi, em qualquer deles, as condições eram boas. Num
compartimento duplo, uma pessoa terá, ou não, de se sujeitar à maneira de ser
ou estar do parceiro, mas no caso do tipo simples, cada utente fará o que lhe
der na real gana. Tanto na escolha, como na disposição dos quadros, posters ou
calendários nas paredes, ou ainda os tapetes, carpetes ou peles, dispostos pelo
chão, só ao locatário diz respeito.
Sabemos
que, entre tanta gente, há de uns e de outros: há quem se esmere com a
apresentação da cama no que concerne à dobra de uma manta ou do lençol, e há
outros que, para eles, tanto se lhes dá, como se lhes deu. Prova disso, e disse
quem sabia, que o Carlos Silva, técnico assistente de gruas, colocava tal
minúcia na arrumação e exposição das coisas, que, desde a cama, ao armário,
malas, bibelôs e tapete, tudo estava milimetricamente disposto. Ele era um
metódico, o que lhe conferia um porte algo cerimonioso. Isso causava uma
certa inveja a algumas pessoas mais perversas. E como lia muito, especialmente
livros, e usava barba, crescida, esses maldizentes alcunhavam-no de pseudo-intelectual.
O
Carlos Silva, tal como muitos outros, gostava de passar um bocadinho do serão
no Bar. Ora a ler, ora a jogar bilhar, desde que os parceiros fossem indivíduos
de uma certa linhagem, ele alinhava. E foi depois de ter lido, jogado e
convivido, que saiu do Bar e caminhou para o seu aprazível quarto, onde o
esperava uma cama fofinha e um tapete de lã de carneiro, tão suave que, ao
pisá-lo, imaginava estar sobre nuvens.
O
Carlos meteu a chave à porta e, mal esta se abriu, o que viu nem dava para
acreditar. Ele ficou estático, quedo e mudo com o espetáculo (triste) que se
apresentava diante dos seus olhos. Em pose artística (?), olhando na direção da
porta, pisando o já amarfanhado tapete e exibindo um letreiro na testa,
esperava-o uma linda e altiva burra, que o mirava de alto a baixo.
Essa
mensagem de amor, escrita sobre cartolina branca, com tinta preta, dizia:
ENTRA, QUERIDO!
Alguém,
malfazejo ou libertino quanto baste, terá escrito aquela provocatória frase,
pondo na testa da burra o que a sua boca não dissera: à revelia, portanto.
Agora,
para retirar o animal do quarto é que foram elas: o Carlos Silva bem chamava,
acenando-lhe no sentido da saída, mas ela é que não arrancava dali.
Confortavelmente instalada, com as patas em cima do tapete de lã, estava agora
a burra para sair do quarto e expor-se ao ar frio da noite, com as patas no
chão frio. Com isso, o animal até podia apanhar um resfriamento. Bem, mas a
cena não podia durar toda a noite. E o Carlos não teve outro remédio senão
retornar ao Bar e trazer consigo três maduros que, ainda assim, tiveram imensa
dificuldade em convencer a burra a sair dos aposentos, onde ela se sentia tão
bem. Tivesse ocorrido ao Carlos Silva a lembrança de se deslocar ao refeitório
em demanda de um molho de cenouras, e o problema tinha acabado tão depressa
como começara.
Agora,
era dar um jeito à cama e limpar os bonicos[1]
de cima da pele de cordeiro, porque o pedido de demissão, a apresentar ao engº
Farinha, ficava para a manhã do dia seguinte.
Como
rescaldo da saga, o pedido não foi aceite, mas o autor da gracinha foi
descoberto. E quem mais havia de ser, se não o chanfrado do Nogueira, manobrador
de gruas e da bomba Schwing!?
Mas
o que importa é que o Carlos Silva ficou. Depois, era só arranjar um pouco de
estofo e poder de encaixe para aparar as piadas dos gozões.
Carlos, onde quer que estejas, aceita, em meu nome, um abraço do Grupo C.T.
Texto extraído do livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA" Vol. II
[1]
Excrementos de animal asinino e não só
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