- Quem não conduz R4, monta burro -
Tal como este mundo - que é composto por diversos tipos de seres, raças, credos, tendências e espécies da mais variada espécie – também esta zona oriental de Marrocos, onde se situava a obra, era habitada por humanos, desumanos, carneiros, cães, gatos vadios e, até - pasme-se – burros vadios. Quero com isto dizer que, neste desfile de excêntricos, também poderão figurar burricadas de asininos e mais quem os venera, monta ou conduz.
Realmente,
no dia a dia, era frequente vermos por ali, à deriva, algumas dezenas de
burros, a pastar pedra e terra, porque herbáceas verdes ou secas, era coisa
que, por aquelas bandas, desde Naíma a El Aioun, não havia. Aquele arraial de
burros perdidos, sem donos, a vaguear por aqueles terrenos, podia comparar-se
ao que se passa em certas aldeias do nosso país, com cães e gatos vadios. A
grande diferença era a altura dos burritos, cujos dorsos não teriam mais do que
um metro e dez. Muito mais baixos do que os que estávamos habituados a ver por
essas aldeolas portuguesas.
À
parte dos burros, era suposto que as Construções Técnicas fornecessem a certas
categorias de colaboradores, especialmente aos chefes de serviço, um meio de
transporte individual, o qual tanto seria utilizado ao serviço direto da obra,
da empresa, em si, como até no uso particular, caso concreto dos fins de semana.
Eu
próprio tive de andar à boleia do Santiago Silva durante quase um mês, que foi
o tempo de espera por uma Renault R4, que tardava em fazer o trajeto entre
Casablanca e Oujda. Nesse período, na obra, ou andava a pé ou, então, por
simpatia do Santiago, era de carrinha, por empréstimo da sua R4.
Mas
eu era eu; o Lima Remédios era o Lima Remédios. E foi dentro desta
diferenciação que se fez história nesta obra, por obra e graça do técnico do
Laboratório de Betões.
O
colega Lima Remédios era um tipo novo. Eu tinha trinta e dois anos, mas julgo
que ele era mais novo: talvez tivesse uns vinte e cinco. Era alto, sóbrio,
altivo, vestia bem e, talvez, demasiado presunçoso. Como disse, era técnico do
Laboratório de Betões e, por isso, subordinado do engº Morgado, este sim, chefe
daquela unidade de ensaios de betões e solos. Mas o Remédios, lá no seu
conceito, achava que também tinha direito a uma Renault R4, que eram os carros
da frota-tipo
adquiridos para a obra. Ele fazia os seus périplos diários entre as diversas centrais
de betão da obra, Laboratório e Escritório Principal. A obra era bastante
extensa e o nosso amigo era capaz de ter de palmilhar à volta de dez
quilómetros por dia. Se ele tivesse espírito de missão ou espírito de atleta,
tudo o resto era secundário, e tudo o que fazia lhe daria prazer mas, como
parece, esses não eram bem os predicados do Remédios.
O
fulano, numa primeira fase, começou por pedinchar uma carrinha igual às dos
outros, o que não teve eco na direção de obra. Depois, na fase seguinte, exigiu
que lhe dessem uma carrinha R4, tal como tinham dado a outros, que não
andariam, a pé, mais que um décimo das distâncias que ele percorria dentro da
obra. Mas a resposta voltou a ser negativa, o que o deixou extremamente
revoltado.
Mas
o Lima Remédios, devido ao seu caráter, não era pessoa de se deixar ficar. Ele
era um duro e, dentro dessa filosofia, jurou vingança. Disso deu conhecimento
ao seu chefe direto, mas também aos colegas mais íntimos, pese embora não
revelando nunca a forma como é que essa vingança iria ser posta em prática. Era
esperar para ver o que o técnico tinha na manga, que, sob o seu ponto de vista,
desse resposta à afronta da qual estava a ser vítima.
Tendo
chegado à conclusão de que não adiantava voltar a esmolar a tão - antes –
desejada carrinha, foi ao Armazém, requisitou uma corda de sisal com dois
metros e dois cerra-cabos, pensando ter resolvido a primeira parte do seu plano
secreto. A segunda fase foi a compra de um jerico a um servente seu, que se
dizia dono de um daqueles burros que por ali vagueavam. O rapaz pegou na corda
de sisal, laçou o burro e levou-o à presença do Lima, tendo cobrado cinco
dirhams pela suposta venda.
No
dia seguinte, pela manhã, para surpresa e gáudio do pessoal da obra – e não só
- era ver o Lima Remédios de chapéu de palha de aba larga, tipo mexicano, jilaba castanha riscada, com o
cone de Abrams, varão e chapa da base às costas, montado num daqueles burros selvagens que andavam por ali à deriva, e que ele tinha conseguido domar e
domesticar à última hora. De tão comprido sobre burro tão curto, fazia algum
esforço para evitar as sucessivas raspagens que as biqueiras das botas faziam no
chão, mas, mesmo assim, sempre ia mais cómodo do que andar por ali a budos. Ele saltava de central em
central, fazendo o seu trabalho com a mesma dedicação de outrora, porque sentia
um certo brio profissional e fazia questão de o demonstrar, mas, lá no seu
íntimo, nunca mais perdoaria às chefias aquilo que considerava uma atroz descriminação.
Segundo
o seu ponto de vista, a vingança terá sido terrível. O Lima Remédios achou que, no
que concerne ao modo e à forma como tinha retaliado, a esta hora as entidades
que lhe haviam sonegado a viatura, estariam a sentir graves problemas de
consciência.
Dentro
de uma certa linha filosófica, poderíamos dizer que a frase aplicável a esta
ação do Remédios seria mesmo aquela que diz: “Para grandes males, grande(s)
Remédios”.
Este
técnico, que ainda burricou durante mais duas semanas pela obra, fazendo o seu
trabalho de slumps e cubos, já
apresentara a sua demissão. Depois rumou a Portugal, não sem antes ter
devolvido o jerico ao seu ajudante de campo, que, abusivamente, se dizia dono do animal. Os cinco dirhams,
já espatifados, em Coca-Cola e amendoins, pelo rapazola, não retornaram à
bolsa do Lima Remédios, tal como seria de prever. Julgo que foram considerados como paga do aluguer do animal.
▬▬▬▬▬
Extrato do livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", VOL. II
Sem comentários:
Enviar um comentário