segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Cena XV - Marrocos - Se não de R4, ao menos de Burro


- Quem não conduz R4, monta burro -

O BURRITO que, outrora, fora do Lima

 





Tal como este mundo - que é composto por diversos tipos de seres, raças, credos, tendências e espécies da mais variada espécie – também esta zona oriental de Marrocos, onde se situava a obra, era habitada por humanos, desumanos, carneiros, cães, gatos vadios e, até - pasme-se – burros vadios. Quero com isto dizer que, neste desfile de excêntricos, também poderão figurar burricadas de asininos e mais quem os venera, monta ou conduz.
Realmente, no dia a dia, era frequente vermos por ali, à deriva, algumas dezenas de burros, a pastar pedra e terra, porque herbáceas verdes ou secas, era coisa que, por aquelas bandas, desde Naíma a El Aioun, não havia. Aquele arraial de burros perdidos, sem donos, a vaguear por aqueles terrenos, podia comparar-se ao que se passa em certas aldeias do nosso país, com cães e gatos vadios. A grande diferença era a altura dos burritos, cujos dorsos não teriam mais do que um metro e dez. Muito mais baixos do que os que estávamos habituados a ver por essas aldeolas portuguesas.

À parte dos burros, era suposto que as Construções Técnicas fornecessem a certas categorias de colaboradores, especialmente aos chefes de serviço, um meio de transporte individual, o qual tanto seria utilizado ao serviço direto da obra, da empresa, em si, como até no uso particular, caso concreto dos fins de semana.
Eu próprio tive de andar à boleia do Santiago Silva durante quase um mês, que foi o tempo de espera por uma Renault R4, que tardava em fazer o trajeto entre Casablanca e Oujda. Nesse período, na obra, ou andava a pé ou, então, por simpatia do Santiago, era de carrinha, por empréstimo da sua R4.
Mas eu era eu; o Lima Remédios era o Lima Remédios. E foi dentro desta diferenciação que se fez história nesta obra, por obra e graça do técnico do Laboratório de Betões.
O colega Lima Remédios era um tipo novo. Eu tinha trinta e dois anos, mas julgo que ele era mais novo: talvez tivesse uns vinte e cinco. Era alto, sóbrio, altivo, vestia bem e, talvez, demasiado presunçoso. Como disse, era técnico do Laboratório de Betões e, por isso, subordinado do engº Morgado, este sim, chefe daquela unidade de ensaios de betões e solos. Mas o Remédios, lá no seu conceito, achava que também tinha direito a uma Renault R4, que eram os carros da frota-tipo adquiridos para a obra. Ele fazia os seus périplos diários entre as diversas centrais de betão da obra, Laboratório e Escritório Principal. A obra era bastante extensa e o nosso amigo era capaz de ter de palmilhar à volta de dez quilómetros por dia. Se ele tivesse espírito de missão ou espírito de atleta, tudo o resto era secundário, e tudo o que fazia lhe daria prazer mas, como parece, esses não eram bem os predicados do Remédios.
O fulano, numa primeira fase, começou por pedinchar uma carrinha igual às dos outros, o que não teve eco na direção de obra. Depois, na fase seguinte, exigiu que lhe dessem uma carrinha R4, tal como tinham dado a outros, que não andariam, a pé, mais que um décimo das distâncias que ele percorria dentro da obra. Mas a resposta voltou a ser negativa, o que o deixou extremamente revoltado.
Mas o Lima Remédios, devido ao seu caráter, não era pessoa de se deixar ficar. Ele era um duro e, dentro dessa filosofia, jurou vingança. Disso deu conhecimento ao seu chefe direto, mas também aos colegas mais íntimos, pese embora não revelando nunca a forma como é que essa vingança iria ser posta em prática. Era esperar para ver o que o técnico tinha na manga, que, sob o seu ponto de vista, desse resposta à afronta da qual estava a ser vítima.
Tendo chegado à conclusão de que não adiantava voltar a esmolar a tão - antes – desejada carrinha, foi ao Armazém, requisitou uma corda de sisal com dois metros e dois cerra-cabos, pensando ter resolvido a primeira parte do seu plano secreto. A segunda fase foi a compra de um jerico a um servente seu, que se dizia dono de um daqueles burros que por ali vagueavam. O rapaz pegou na corda de sisal, laçou o burro e levou-o à presença do Lima, tendo cobrado cinco dirhams pela suposta venda.
No dia seguinte, pela manhã, para surpresa e gáudio do pessoal da obra – e não só - era ver o Lima Remédios de chapéu de palha de aba larga, tipo mexicano, jilaba castanha riscada, com o cone de Abrams, varão e chapa da base às costas, montado num daqueles burros selvagens que andavam por ali à deriva, e que ele tinha conseguido domar e domesticar à última hora. De tão comprido sobre burro tão curto, fazia algum esforço para evitar as sucessivas raspagens que as biqueiras das botas faziam no chão, mas, mesmo assim, sempre ia mais cómodo do que andar por ali a budos. Ele saltava de central em central, fazendo o seu trabalho com a mesma dedicação de outrora, porque sentia um certo brio profissional e fazia questão de o demonstrar, mas, lá no seu íntimo, nunca mais perdoaria às chefias aquilo que considerava uma atroz descriminação.
Segundo o seu ponto de vista, a vingança terá sido terrível. O Lima Remédios achou que, no que concerne ao modo e à forma como tinha retaliado, a esta hora as entidades que lhe haviam sonegado a viatura, estariam a sentir graves problemas de consciência.
Dentro de uma certa linha filosófica, poderíamos dizer que a frase aplicável a esta ação do Remédios seria mesmo aquela que diz: “Para grandes males, grande(s) Remédios”.

Este técnico, que ainda burricou durante mais duas semanas pela obra, fazendo o seu trabalho de slumps e cubos, já apresentara a sua demissão. Depois rumou a Portugal, não sem antes ter devolvido o jerico ao seu ajudante de campo, que, abusivamente, se dizia dono do animal. Os cinco dirhams, já espatifados, em Coca-Cola e amendoins, pelo rapazola, não retornaram à bolsa do Lima Remédios, tal como seria de prever. Julgo que foram considerados como paga do aluguer do animal.

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Extrato do livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", VOL. II


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