
Este
povo falava a sua própria língua, a berbere que, por estranho que pareça, era
também falada pelos distantes tuaregues. Sendo minoritária, nunca
se chegou a impor e até nunca foi tida como escrita. Aqui nesta zona do Rif, a
língua castelhana era a mais utilizada.
O
esquema traçado para a viagem visava um caminho menos acidentado para a ida e,
no regresso, embora com algum sacrifício pela travessia das montanhas do Rif,
fariam uma paragem na Barragem Mohamed V que, dizia quem conhecia, era um
espanto. Como nunca antes tinham ido para aqueles lados, nunca se sabia o que
se poderia encontrar; além do mais, o modo como o carro se comportaria era uma
incógnita. Mas eles iam partir cedo, às 6h00, como combinado. O percurso,
segundo os informaram, demoraria umas quatro horas para cada lado e eles
queriam evitar viajar de noite. Assim, o Santos pegou na bomba e saiu do estaleiro
às 06h00. Entrou na Nacional 6, virando à esquerda e seguiu para El Aioun, onde
ia recolher o "patrão" Sete Línguas.
Resumindo,
em traços gerais, soubemos que, a partir de El Aioun, continuaram pela N6 e, 20
km mais à frente, deixaram esta via e entraram numa estrada secundária que os
levaria até à povoação de Mechra Hommadi. Seguiram em frente, com passagem por
Hassi-Berkane, onde entraram na N19. Passaram por Douiria, Mont Arruit, já na
N2, – onde pararam para comer alguma coisa – seguiram por Driouch,
Boufarkouche, Talamagait, Imzouren e chegada a Al Hoceima, por volta das 11h00.
Ali
chegados, deixaram o carro. No firme propósito de desentorpecerem as pernas, caminharam pelas zonas mais antigas da
cidade, a fim de apreciarem aquelas ruas estreitas e casas branquinhas que,
dispostas em anfiteatro, transmitiam uma onda poética a quem teve a felicidade
de as conhecer.
De
tanto andar de carro e depois de palmilharem cerca de uma hora e meia ruelas adentro, as dores nos pés e a fome
começaram a tomar conta deles. Para remediar esta segunda pecha, era fácil,
pois não faltava ali onde comer, mas remédio para a primeira já era mais
difícil. Eles precisavam de descanso, descanso sentado e, se arranjassem por
ali perto onde dar ao dente, aproveitavam a embalagem e sentavam-se um bocado,
para aliviar o que estava dentro dos calcantes[2].
E foi numa churrasqueira que abancaram, para saborear o belo frango na brasa, acompanhado com cerveja marroquina servida por debaixo da mesa.
Terminado
o repasto, acharam que faziam bem em dar uma voltita pela zona mais moderna da
cidade, talvez para estabelecer uma comparação entre a nova e a velha. E assim
foi. Ao virar de uma esquina, o Sete
Línguas parou e deteve-se em frente a uma montra, de onde ressaltava um
sapato que lhe estava mesmo a cair no goto. Mas, entretanto, através da montra,
reparou que no interior da loja estavam duas meninas de bata azul, que,
depreendeu, seriam empregadas. O Santos, que ia ligeiramente adiantado, virou-se
para trás e gritou para o "patrão"[3]:
—
Então, Silveira, vamos embora, que se faz tarde!
—
Ó Santos, chega lá aqui! Tenho os sapatos todos descambados e gostava de comprar aqueles, os
castanhos, mas tenho as meias rotas!...
O
Santos, armado em macaco, sossegou o Silveira:
—
Mas, ó Silveira, isso não constitui problema! Eu sei falar um bocado de
espanhol e, enquanto você experimenta os sapatos, eu entretenho as gajas! Entre
lá!
O
nosso amigo Sete Línguas, cheio de
boa fé e confiança no Santos, entrou. Depois de cumprimentar as meninas,
apontou para aqueles sapatos que lhe tinham causado tão boa impressão. Dizendo
que calçava o 42, pediu para experimentar uns. Uma delas abriu um gavetão e de
lá tirou um par de sapatos, que pôs à disposição do Silveira. Este retardou a
operação da experimentação, esperando que o Santos entabulasse conversa com as
meninas, o que aconteceu. Sentindo o caminho
livre, descalçou os velhos sapatos e, meio desconfiado, enfiou os pés nos novos. Estavam apertados. Nisto, diz o Santos:
—
Então chefe! É hoje ou amanhã?
O
homem, sentindo os pés apertados, ainda tentou que o amigo (?) voltasse a
entreter as meninas, mas isso não foi possível porque o Santos já tinha
esgotado os seus argumentos em espanhol, e as meninas estavam ambas concentradas
no apoio a dar ao cliente.
Finda
a operação, enquanto o Silveira puxava pela carteira, uma das meninas pegou nos
sapatos velhos e fez menção de os colocar no caixote do lixo. A um aceno de
cabeça do Santos, a confirmar o gesto da menina, esta não foi de modas, e os
descambados sapatos foram mesmo para reciclagem, coisa a que, na altura, o
Silveira não se opôs.
Eram
três da tarde, e não havendo mais nada que os retivesse por ali, foi tempo de
pegar na bomba e zarpar de regresso a El Aioun.
Conforme
planeado, o itinerário do regresso seria diferente do da ida, sendo que, desta
vez, passariam pela Barragem Mohamed V. E lá foram eles estrada fora, pela N19,
de modo a chegarem àquele complexo hídroelétrico ainda com a luz do dia. Em
condições normais, sempre seriam umas três horas de caminho. Mas isso seria em
condições normais, porque em situação anormal, ninguém pode ter a veleidade de
o saber.
Após
três horas de viagem, pela quilometragem feita eles sabiam que a Barragem já
não estaria longe, mas o Belzebu do Rif[4],
que estaria por perto, à espreita do exato momento para atacar, resolveu acabar
com a boa disposição do duo, avariando-lhes a instalação elétrica da iluminação
do carro.
O
motorista de ocasião, saiu do carro, abriu o capot, acendeu o isqueiro e vasculhou visualmente aquela panóplia de cabos e fios
entroncados uns nos outros, tendo concluido que o busilus
devia estar na parte elétrica, na vertente da iluminação, já que o motor
trabalhava. Mas o Santos a ver aqueles fios todos, era como um boi a olhar para
um palácio. Coçou a cabeça, deu um pontapé num pneu e, com um desabafo próprio
das gentes do Norte, gritou para o Sete
Línguas:
—
Ó Silveira! Estamos quilhados, carago!
Esta merda não dá nada! E agora? Nem uma merda de um mapa para ver onde estamos!
O
Silveira era o patrão, mas, numa situação daquelas, ele não mandava nada. Se
ele era apenas especialista em Línguas e em Botânica – e agora, na obra, a atar
ferro - que obrigação tinha ele de perceber de eletromecânica? O Santos é que
tinha a responsabilidade moral e material de levar a bomba a bom porto. Não
era só gozar a condução daquela bela máquina, passear, comer e beber à conta do
orçamento do Silveira… o que era isso?
E com uma grande
lata, pergunta ao outro, “E agora?”
Mas o Silveira, com os olhos
esbugalhados e uma lágrima ao canto de um deles, fruto da emoção do momento, também
não foi mais expedito que o Santos, já que respondeu na mesma moeda, isto é,
com um sonoro “E agora?” Mas essa era uma pergunta que o chauffeur já tinha
feito. Numa situação embaraçosa como aquela, a prenunciar noite escura, abandonados
pelos deuses numa curva da estrada, num ermo em plenas faldas das montanhas do
Rif, possivelmente infestadas por 40 ladrões da seita do Ali-Babá, o
que se pedia, e era premente, era lucidez, cabeça fria e umas pitadas de
valentia. Mas, por enquanto, eram só lamentos e ais. Depois, sem solução à
vista, sentaram-se nos bancos da viatura, esperando que alguma alma milagrosa,
a viajar de carro, passasse por ali e lhes desse uma ajuda. Mas qual quê! Até
agora – e já decorrera mais de meia hora – o que por ali tinha passado eram
corvos e mochos que, com o seu sinistro piar, mais agudizavam o medo que ambos
sentiam. Se ainda, ao menos, estivesse luar... mas esse desiderato não lhes foi
concedido, já que essas historietas de: “ Y
la luna parece un turbante de plata perdido de Alá”, era só na
canção de Los Tamara, que não passava
de teoria barata para enganar os românticos. A não ser que essa mesma luna,
naquela noite, só aparecesse a quem estivesse no deserto do Sahara. Ainda
assim, não sendo crentes no Alcorão, decerto não esperariam uma bênção de Alá,
só porque estavam em apuros.
A noite avançava, e para quem fazia
tanta questão de visitar a famosa Barragem Mohamed V, a visibilidade já era. O
Silveira lamentava-se. Lamentava-se, não apenas pela sua bomba, mas porque os seus pés, envoltos numas coisas de cabedal, a que chamavam sapatos, mas que para ele
eram duas autênticas prensas, já estavam a chegar ao limite do sofrimento.
Cansados,
descoroçoados, e quando preparavam a mente para dormitarem cada qual por seu
banco, eis que aparece um raio de luz ao fundo da curva. Não havia dúvida: eram
os faróis de um carro. O Santos, mais destemido que o Sete Línguas, deu um salto para o meio da via e com os antebraços
na horizontal e as palmas das mãos abertas, viradas ao céu - como já vira os
marroquinos fazerem na obra aquando das suas preces - fez frente à viatura que
se aproximava. Quem conduzia o carro, sabia bem de quem se tratava. Não porque
se detetasse, logo à primeira vista, que os sitiados eram portugueses; eles até
podiam ser espanhóis ou italianos, mas, pela indumentária, árabes é que eles
não seriam mesmo. E foi por isso que o enviado de Alá, resolveu parar, sem
receio. Tivessem os portugueses a infeliz ideia de exibir, na tola e no corpo
um turbante, uma gilaba ou um albernoz, mesmo
que fosse só como recordação, e nunca aquele condutor marroquino tinha parado a
sua carrinha de caixa aberta naquele ermo.
Mas, agora, um novo problema surgia:
é que o homem, a quem podemos atribuir o epíteto de socorrista, não pescava uma única palavra de francês,
espanhol e, ainda menos, de português. Perante esta embaraçosa situação, o
Santos que, pelos vistos, percebia alguma coisa de mímica, lá se fez entender
ao socorrista.
E, gesto p'ra cá, gesto p'ra lá, ficaram a saber que a Barragem estava
apenas a uns três quilómetros dali. O que, sobremaneira, os animou. Foi então
que o Santos tentou fazer entender ao marroquino que precisavam do seu auxílio
no sentido de os rebocar - no sentido
figurado, já se vê – indo à frente, a abrir caminho e, deste modo, já o Opel
Rekord 1900, podia chegar, em segurança, às portas da Barragem. Mas o maometano,
ou por não perceber a jogada, ou por
ter mais que fazer, marimbou-se na rudimentar mímica do Santos e, a todo o gás, desapareceu
naquela noite escura como breu, para não mais ser visto.
Com tudo isto, já se perdera quase
uma hora e a situação pouco mais tinha evoluído. Ao menos, tinham ficado a
saber que a Barragem estava ali relativamente perto. Perto para o Santos, que
não para o Silveira, e já vão ver o porquê. É que o condutor tinha de conduzir
e, para isso, ia dentro do carro, mas então quem é que orientava o rumo, em
plenas estrada cheia de curvas, numa noite carregada de escuro? Como não havia
por lá mais ninguém, era claro que o guia só podia ser o Sete Línguas! Este, a princípio, recusou tal ideia, alegando que,
além de ser o patrão, também tinha os pés feitos num nó, tão doridos estavam. E
argumentava:
— Ó Santos, eu mal sinto os pés!
Tenho a certeza de que o sangue já nem circula por aqui, e agora tenho que
fazer de guia?
— Ó Silveira, você vai à frente, de
braços abertos, com dois cigarros acesos, um em cada mão e, assim, chegamos ao
raio da Barragem, sãos e salvos. Porque, se você continuar na sua, a teimar em
não alinhar como guia, o que pode acontecer é que eu, não conseguindo vislumbrar
a berma da estrada, me despiste e vamos os dois bater com os cornos lá no fundo
do precipício. E o carro, esse, fica no fundo do vale, feito em bosta. Agora escolha!
O Silveira ainda aguentou uns
quinhentos metros, a trote, mesmo parando e retomando a marcha várias vezes,
mas depois, chegou o fim. O corpo humano não é de ferro. Há limites para tudo e
também para os pés do "patrão" que, agora, numa situação de subalternidade, já
não mandava nada, nem, tão pouco, nos pés.
Os pés, como se sabia, estavam no
fim, mas a cabeça, essa ainda funcionava. Ao ralenti, mas funcionava. Tanto assim era, que o dono dos pés, e dos
sapatos novos, lembrou-se que tinha uma alternativa que, até então não lhe
tinha ocorrido: era descalçar os malditos sapatos e trotar descalço. Que diabo,
em piso asfaltado que mais queria ele? Descalçou-se e trotou. Os pés, agora
livres de engulhos, já eram lubrificados pelo sangue que, antes encontrara o
caminho obturado.
Depois desta tortura, chegaram ao
portão da Barragem. O Santos dirigiu-se ao guarda de serviço e este, simpático,
já a fazer-se à gorjeta, chamou o eletricista de turno que, de pronto, e de
modo fácil, resolveu aquele intrincado problema elétrico na instalação do Opel
Rekord 1900, a que o Sete Línguas
chamava a sua bomba.
Dadas as gorjetas e feitos os
agradecimentos, com vénias e tudo, lá vieram aquelas duas almas meias depenadas e bastante constrangidas,
estrada N19 fora, até El Aioun, onde o Santos deixou o "patrão" Silveira e seguiu
até ao aldeamento do estaleiro, onde arrumou a viatura. Eram para aí umas onze da noite.
Mas, durante esta última fase da viagem, como se o
sofrimento não bastasse, o Silveira ainda teve que ouvir um raspanete do Santos
por causa do raio das línguas:
Dizia o chauffeur:
— Então, você é que era o tal
Tradutor, que vinha para Marrocos fazer de intérprete e eu é que tive de
falar com as gajas? E com o gajo da
carrinha? Se não fosse eu, com a minha mímica, ainda agora lá estávamos, à
espera de não sei quê. O Silveira não gostou e ficou um bocado agastado com o
inoportuno provocador, mas não retorquiu. Ele bem sabia que o Santos era chanfrado da mona e, se o chateasse mais, ainda era capaz de o deixar a ele e ao carro ali no meio da estrada e caminhar a pé no resto do percurso.
A bomba, essa ficava à
guarda do chauffeur até ao dia seguinte, altura em que o dono iria buscá-la,
para ser ele próprio a desfrutar daquela máquina. O dono do carro andava a tirar a carta e, segundo a lei, mesmo em
Marrocos, sem a permis de conduire, ainda não se encontrava
habilitado a pegar naquela ou em qualquer outra bomba. Mas a obtenção da
carta estava para breve.
Extrato do livro "DEGRAUS E MARCOS DA VIDA", Vol. II
Nota: O Santos era encarregado de Armaduras e chefe do Silveira. O Silveira, que se dizia licenciado em Botânica pela Universidade de Coimbra, era um ex-Tradutor que, por tão fraco desempenho, foi despromovido a Armador de Ferro.
[1]
Povo do norte de Marrocos, com língua própria, não oficial
[2]
Sapatos
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