terça-feira, 29 de abril de 2014

Cena XX - nas C.T. - Marrocos (1977) - Al-Hoceima

the pearl of the mediterranean - Al Hoceima, Al HoceimaUm Sábado em Al-Hoceima                      Para estrear, a sério, a bomba e o chauffeur, nada melhor que fazer uma viagem mais longa do que ir e vir de Oujda. Noventa quilómetros nem davam para aquecer o motor. Ir à zona balnear de Saidia, segundo o Santos, também não seria a viagem ideal. Pese embora já serem para aí uns cem quilómetros para cada lado, as estradas eram demasiado planas e horizontais para pôr a viatura à prova. Pensando melhor, porque não ir até Al- Hoceima? Seria o ideal. O traçado rodoviário era muito variado: ora segmentos de reta, ora curvas e contracurvas; uns planos horizontais e outros inclinados, enfim, era esta variedade de condições que iria garantir um perfeito teste à máquina do Sete Línguas. Eram duzentos e cinquenta quilómetros para cada lado, mas que se lixasse! Ainda por cima, a gasolina em Marrocos era ao preço da uva mijona, porque não avançar para aquela cidade do Mediterrâneo, em plena zona dos berberes[1]?
         Este povo falava a sua própria língua, a berbere que, por estranho que pareça, era também falada pelos distantes tuaregues. Sendo minoritária, nunca se chegou a impor e até nunca foi tida como escrita. Aqui nesta zona do Rif, a língua castelhana era a mais utilizada.
O esquema traçado para a viagem visava um caminho menos acidentado para a ida e, no regresso, embora com algum sacrifício pela travessia das montanhas do Rif, fariam uma paragem na Barragem Mohamed V que, dizia quem conhecia, era um espanto. Como nunca antes tinham ido para aqueles lados, nunca se sabia o que se poderia encontrar; além do mais, o modo como o carro se comportaria era uma incógnita. Mas eles iam partir cedo, às 6h00, como combinado. O percurso, segundo os informaram, demoraria umas quatro horas para cada lado e eles queriam evitar viajar de noite. Assim, o Santos pegou na bomba e saiu do estaleiro às 06h00. Entrou na Nacional 6, virando à esquerda e seguiu para El Aioun, onde ia recolher o "patrão" Sete Línguas.
Resumindo, em traços gerais, soubemos que, a partir de El Aioun, continuaram pela N6 e, 20 km mais à frente, deixaram esta via e entraram numa estrada secundária que os levaria até à povoação de Mechra Hommadi. Seguiram em frente, com passagem por Hassi-Berkane, onde entraram na N19. Passaram por Douiria, Mont Arruit, já na N2, – onde pararam para comer alguma coisa – seguiram por Driouch, Boufarkouche, Talamagait, Imzouren e chegada a Al Hoceima, por volta das 11h00.
Ali chegados, deixaram o carro. No firme propósito de desentorpecerem as pernas, caminharam pelas zonas mais antigas da cidade, a fim de apreciarem aquelas ruas estreitas e casas branquinhas que, dispostas em anfiteatro, transmitiam uma onda poética a quem teve a felicidade de as conhecer.
De tanto andar de carro e depois de palmilharem cerca de uma hora e meia ruelas adentro, as dores nos pés e a fome começaram a tomar conta deles. Para remediar esta segunda pecha, era fácil, pois não faltava ali onde comer, mas remédio para a primeira já era mais difícil. Eles precisavam de descanso, descanso sentado e, se arranjassem por ali perto onde dar ao dente, aproveitavam a embalagem e sentavam-se um bocado, para aliviar o que estava dentro dos calcantes[2]. E foi numa churrasqueira que abancaram, para saborear o belo frango na brasa, acompanhado com cerveja marroquina servida por debaixo da mesa.
Terminado o repasto, acharam que faziam bem em dar uma voltita pela zona mais moderna da cidade, talvez para estabelecer uma comparação entre a nova e a velha. E assim foi. Ao virar de uma esquina, o Sete Línguas parou e deteve-se em frente a uma montra, de onde ressaltava um sapato que lhe estava mesmo a cair no goto. Mas, entretanto, através da montra, reparou que no interior da loja estavam duas meninas de bata azul, que, depreendeu, seriam empregadas. O Santos, que ia ligeiramente adiantado, virou-se para trás e gritou para o "patrão"[3]:
— Então, Silveira, vamos embora, que se faz tarde!
— Ó Santos, chega lá aqui! Tenho os sapatos todos descambados e gostava de comprar aqueles, os castanhos, mas tenho as meias rotas!...
O Santos, armado em macaco, sossegou o Silveira:
— Mas, ó Silveira, isso não constitui problema! Eu sei falar um bocado de espanhol e, enquanto você experimenta os sapatos, eu entretenho as gajas! Entre lá!
O nosso amigo Sete Línguas, cheio de boa fé e confiança no Santos, entrou. Depois de cumprimentar as meninas, apontou para aqueles sapatos que lhe tinham causado tão boa impressão. Dizendo que calçava o 42, pediu para experimentar uns. Uma delas abriu um gavetão e de lá tirou um par de sapatos, que pôs à disposição do Silveira. Este retardou a operação da experimentação, esperando que o Santos entabulasse conversa com as meninas, o que aconteceu. Sentindo o caminho livre, descalçou os velhos sapatos e, meio desconfiado, enfiou os pés nos novos. Estavam apertados. Nisto, diz o Santos:
— Então chefe! É hoje ou amanhã?
O homem, sentindo os pés apertados, ainda tentou que o amigo (?) voltasse a entreter as meninas, mas isso não foi possível porque o Santos já tinha esgotado os seus argumentos em espanhol, e as meninas estavam ambas concentradas no apoio a dar ao cliente.
Finda a operação, enquanto o Silveira puxava pela carteira, uma das meninas pegou nos sapatos velhos e fez menção de os colocar no caixote do lixo. A um aceno de cabeça do Santos, a confirmar o gesto da menina, esta não foi de modas, e os descambados sapatos foram mesmo para reciclagem, coisa a que, na altura, o Silveira não se opôs.
Eram três da tarde, e não havendo mais nada que os retivesse por ali, foi tempo de pegar na bomba e zarpar de regresso a El Aioun.
Conforme planeado, o itinerário do regresso seria diferente do da ida, sendo que, desta vez, passariam pela Barragem Mohamed V. E lá foram eles estrada fora, pela N19, de modo a chegarem àquele complexo hídroelétrico ainda com a luz do dia. Em condições normais, sempre seriam umas três horas de caminho. Mas isso seria em condições normais, porque em situação anormal, ninguém pode ter a veleidade de o saber.
Após três horas de viagem, pela quilometragem feita eles sabiam que a Barragem já não estaria longe, mas o Belzebu do Rif[4], que estaria por perto, à espreita do exato momento para atacar, resolveu acabar com a boa disposição do duo, avariando-lhes a instalação elétrica da iluminação do carro.
O motorista de ocasião, saiu do carro, abriu o capot, acendeu o isqueiro e vasculhou visualmente aquela panóplia de cabos e fios entroncados uns nos outros, tendo concluido que o busilus devia estar na parte elétrica, na vertente da iluminação, já que o motor trabalhava. Mas o Santos a ver aqueles fios todos, era como um boi a olhar para um palácio. Coçou a cabeça, deu um pontapé num pneu e, com um desabafo próprio das gentes do Norte, gritou para o Sete Línguas:
— Ó Silveira! Estamos quilhados, carago! Esta merda não dá nada! E agora? Nem uma merda de um mapa para ver onde estamos!
O Silveira era o patrão, mas, numa situação daquelas, ele não mandava nada. Se ele era apenas especialista em Línguas e em Botânica – e agora, na obra, a atar ferro - que obrigação tinha ele de perceber de eletromecânica? O Santos é que tinha a responsabilidade moral e material de levar a bomba a bom porto. Não era só gozar a condução daquela bela máquina, passear, comer e beber à conta do orçamento do Silveira… o que era isso?
E com uma grande lata, pergunta ao outro, “E agora?”
            Mas o Silveira, com os olhos esbugalhados e uma lágrima ao canto de um deles, fruto da emoção do momento, também não foi mais expedito que o Santos, já que respondeu na mesma moeda, isto é, com um sonoro “E agora?” Mas essa era uma pergunta que o chauffeur já tinha feito. Numa situação embaraçosa como aquela, a prenunciar noite escura, abandonados pelos deuses numa curva da estrada, num ermo em plenas faldas das montanhas do Rif, possivelmente infestadas por 40 ladrões da seita do Ali-Babá, o que se pedia, e era premente, era lucidez, cabeça fria e umas pitadas de valentia. Mas, por enquanto, eram só lamentos e ais. Depois, sem solução à vista, sentaram-se nos bancos da viatura, esperando que alguma alma milagrosa, a viajar de carro, passasse por ali e lhes desse uma ajuda. Mas qual quê! Até agora – e já decorrera mais de meia hora – o que por ali tinha passado eram corvos e mochos que, com o seu sinistro piar, mais agudizavam o medo que ambos sentiam. Se ainda, ao menos, estivesse luar... mas esse desiderato não lhes foi concedido, já que essas historietas de: “ Y la luna parece un turbante de plata perdido de Alá”, era só na canção de Los Tamara, que não passava de teoria barata para enganar os românticos. A não ser que essa mesma luna, naquela noite, só aparecesse a quem estivesse no deserto do Sahara. Ainda assim, não sendo crentes no Alcorão, decerto não esperariam uma bênção de Alá, só porque estavam em apuros.
            A noite avançava, e para quem fazia tanta questão de visitar a famosa Barragem Mohamed V, a visibilidade já era. O Silveira lamentava-se. Lamentava-se, não apenas pela sua bomba, mas porque os seus pés, envoltos numas coisas de cabedal, a que chamavam sapatos, mas que para ele eram duas autênticas prensas, já estavam a chegar ao limite do sofrimento.
Cansados, descoroçoados, e quando preparavam a mente para dormitarem cada qual por seu banco, eis que aparece um raio de luz ao fundo da curva. Não havia dúvida: eram os faróis de um carro. O Santos, mais destemido que o Sete Línguas, deu um salto para o meio da via e com os antebraços na horizontal e as palmas das mãos abertas, viradas ao céu - como já vira os marroquinos fazerem na obra aquando das suas preces - fez frente à viatura que se aproximava. Quem conduzia o carro, sabia bem de quem se tratava. Não porque se detetasse, logo à primeira vista, que os sitiados eram portugueses; eles até podiam ser espanhóis ou italianos, mas, pela indumentária, árabes é que eles não seriam mesmo. E foi por isso que o enviado de Alá, resolveu parar, sem receio. Tivessem os portugueses a infeliz ideia de exibir, na tola e no corpo um turbante, uma gilaba ou um albernoz,  mesmo que fosse só como recordação, e nunca aquele condutor marroquino tinha parado a sua carrinha de caixa aberta naquele ermo.
            Mas, agora, um novo problema surgia: é que o homem, a quem podemos atribuir o epíteto de socorrista, não pescava uma única palavra de francês, espanhol e, ainda menos, de português. Perante esta embaraçosa situação, o Santos que, pelos vistos, percebia alguma coisa de mímica, lá se fez entender ao socorrista. E, gesto p'ra cá, gesto p'ra lá, ficaram a saber que a Barragem estava apenas a uns três quilómetros dali. O que, sobremaneira, os animou. Foi então que o Santos tentou fazer entender ao marroquino que precisavam do seu auxílio no sentido de os rebocar - no sentido figurado, já se vê – indo à frente, a abrir caminho e, deste modo, já o Opel Rekord 1900, podia chegar, em segurança, às portas da Barragem. Mas o maometano, ou por não perceber a jogada, ou por ter mais que fazer, marimbou-se na rudimentar mímica do Santos e, a todo o gás, desapareceu naquela noite escura como breu, para não mais ser visto.
            Com tudo isto, já se perdera quase uma hora e a situação pouco mais tinha evoluído. Ao menos, tinham ficado a saber que a Barragem estava ali relativamente perto. Perto para o Santos, que não para o Silveira, e já vão ver o porquê. É que o condutor tinha de conduzir e, para isso, ia dentro do carro, mas então quem é que orientava o rumo, em plenas estrada cheia de curvas, numa noite carregada de escuro? Como não havia por lá mais ninguém, era claro que o guia só podia ser o Sete Línguas! Este, a princípio, recusou tal ideia, alegando que, além de ser o patrão, também tinha os pés feitos num nó, tão doridos estavam. E argumentava:
            — Ó Santos, eu mal sinto os pés! Tenho a certeza de que o sangue já nem circula por aqui, e agora tenho que fazer de guia?
            — Ó Silveira, você vai à frente, de braços abertos, com dois cigarros acesos, um em cada mão e, assim, chegamos ao raio da Barragem, sãos e salvos. Porque, se você continuar na sua, a teimar em não alinhar como guia, o que pode acontecer é que eu, não conseguindo vislumbrar a berma da estrada, me despiste e vamos os dois bater com os cornos lá no fundo do precipício. E o carro, esse, fica no fundo do vale, feito em bosta. Agora escolha!
            O Silveira ainda aguentou uns quinhentos metros, a trote, mesmo parando e retomando a marcha várias vezes, mas depois, chegou o fim. O corpo humano não é de ferro. Há limites para tudo e também para os pés do "patrão" que, agora, numa situação de subalternidade, já não mandava nada, nem, tão pouco, nos pés.
            Os pés, como se sabia, estavam no fim, mas a cabeça, essa ainda funcionava. Ao ralenti, mas funcionava. Tanto assim era, que o dono dos pés, e dos sapatos novos, lembrou-se que tinha uma alternativa que, até então não lhe tinha ocorrido: era descalçar os malditos sapatos e trotar descalço. Que diabo, em piso asfaltado que mais queria ele? Descalçou-se e trotou. Os pés, agora livres de engulhos, já eram lubrificados pelo sangue que, antes encontrara o caminho obturado.
            Depois desta tortura, chegaram ao portão da Barragem. O Santos dirigiu-se ao guarda de serviço e este, simpático, já a fazer-se à gorjeta, chamou o eletricista de turno que, de pronto, e de modo fácil, resolveu aquele intrincado problema elétrico na instalação do Opel Rekord 1900, a que o Sete Línguas chamava a sua bomba.
            Dadas as gorjetas e feitos os agradecimentos, com vénias e tudo, lá vieram aquelas duas almas meias depenadas e bastante constrangidas, estrada N19 fora, até El Aioun, onde o Santos deixou o "patrão" Silveira e seguiu até ao aldeamento do estaleiro, onde arrumou a viatura. Eram para aí umas onze da noite.
            Mas, durante esta última fase da viagem, como se o sofrimento não bastasse, o Silveira ainda teve que ouvir um raspanete do Santos por causa do raio das línguas:
            Dizia o chauffeur:
            — Então, você é que era o tal Tradutor, que vinha para Marrocos fazer de intérprete e eu é que tive de falar com as gajas? E com o gajo da carrinha? Se não fosse eu, com a minha mímica, ainda agora lá estávamos, à espera de não sei quê. O Silveira não gostou e ficou um bocado agastado com o inoportuno provocador, mas não retorquiu. Ele bem sabia que o Santos era chanfrado da mona e, se o chateasse mais, ainda era capaz de o deixar a ele e ao carro ali no meio da estrada e caminhar a pé no resto do percurso.
            A bomba, essa ficava à guarda do chauffeur até ao dia seguinte, altura em que o dono iria buscá-la, para ser ele próprio a desfrutar daquela máquina. O dono do carro andava a tirar a carta e, segundo a lei, mesmo em Marrocos, sem a permis de conduire, ainda não se encontrava habilitado a pegar naquela ou em qualquer outra bomba. Mas a obtenção da carta estava para breve.

Extrato do livro "DEGRAUS E MARCOS DA VIDA", Vol. II
Nota: O Santos era encarregado de Armaduras e chefe do Silveira. O Silveira, que se dizia licenciado em Botânica pela Universidade de Coimbra, era um ex-Tradutor que, por tão fraco desempenho, foi despromovido a Armador de Ferro.


[1] Povo do norte de Marrocos, com língua própria, não oficial
[2] Sapatos
[3] Era o patrão, porque, hoje, ele pagava tudo
[4] O Diabo mas montanhas


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