quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

31 de DEZEMBRO de 1980 - Uma MÁ DATA.

Na CIMPOR - Souselas

Pois faz hoje 35 anos, que este vosso amigo ia indo deste para o outro Mundo.

Nesse dia 31 de Dezembro de 1980, uma Quarta-Feira, o Rogério Feio, o Cosme, o José  Brincano, o A. Cartaxo, o Pedroso e eu próprio fomos, nesse dia, almoçar a Coimbra, ali para os lados da Baixa.

Após o repasto, e como era o dia de fim de ano, houve quem se lembrasse de levar uma "prenda" para a família. Qualquer que fosse, seria decerto bem recebida em casa de cada um. Por isso, fomos ao Joaquim dos Leitões, ali por detrás da Av. Fernão de Magalhães, onde cada qual se apetrechou com uns nacos de bácoro, de pele crocante, que até fazia salivar.
Pouco depois do nosso regresso à Cimpor, fomos informados pelo diretor da Obra, engº Capinha, e pelo diretor de Produção, Rogério Feio, de que, devido à data, a hora para sair seria às 14h30.
Agora, havia que materializar esse esquema com a fiscalização da Cimpor, para isso, desloquei-me aos seus escritórios. Acompanhado do engº fiscal Abel Machado e do fiscal Rolando Rodrigues, ambos da Cimpor, encetámos um périplo pelas diversas zonas do empreendimento, a fim de avisar todas as chefias, tanto das Construções Técnicas, como as da própria Cimpor, que operavam em zonas contíguas às nossas. Mas a ronda foi curta. Não teriam passado mais de 5 minutos, quando, ao sair do Edifício de Dosagem, apanhei com uma viga de madeira, de 16x8, que já vinha em queda uniformemente acelerada, primeiro no capacete e, depois, na cabeça. Esta peça ter-se-ia desprendido de uma lingada de uma grua-torre, desde uma altura de 60 m, tendo sido eu o "premiado" de fim de ano.
Nunca dei por nada, não senti nada. Sei, pelo que me contaram uns dias depois, que todo eu era um charco de sangue, jorrado da extensa fissura aberta no crânio. 
Não me lembro de ter entrado nem de ter saído dos Hospitais da Universidade de Coimbra, porque, ainda inconsciente, trataram de me pôr ao fresco, possivelmente para dar lugar a outro.
Por solidariedade, ficaram em Coimbra, o Rogério Feio e o engº Capinha. O Rogério, até pediu à sua esposa que viajasse para a Lusa-Atenas e, assim, já não passou o fim de ano só.
Também a Luísa, depois de deixar os meus dois filhos em Vale da Pinta, viajou, de comboio, para Coimbra.
Depois, foram 2 meses de uma semi-recuperação. Isto porque, a pedido do engº Capinha, pedi alta no Hospital de "A Mundial", em Lisboa e segui para Souselas. Nas poucas vezes que ia à obra, em cada passo que dava, só sentia uma espécie de facadas na coluna. É que, além do crânio, também sofri lesões na coluna e nalgumas vértebras. Ao cabo de 6 meses, já estava 100% operacional e capaz de outra.
Por agora, acabaram-se os lamentos. P'ró ano, para quem cá estiver, há mais. 

Uma Boa Passagem e um Bom 2016.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Os meus 1ºs de Dezembro - Vale da Pinta



Os 1ºs de Dezembro. Como eu os via.

Em tempos que já lá vão, pelos anos 50 do século passado, já o Gregoriano assinalava o dia 1 de Dezembro. O nosso 1º de Dezembro, em terras de Vale da Pinta, caraterizava-se de modo muito simples, mas muito significativo. Pela madrugada reunia-se a Banda de Música que, de modo célere, percorria as principais ruas da terra. Era em marcha apressada que o fazia, porque, na época, o dia não era feriado, e os músicos (quase todos trabalhadores rurais) tinham o compromisso de iniciar a sua jornada laboral ao nascer do sol. O horário, que alguém estipulara para a faina rural, era de sol-a-sol. Mesmo nos dias em que em que o astro rei não se deixava ver, a duração do tempo de trabalho afinava sempre por esse diapasão. 
Ainda hoje a iluminação pública em Vale da Pinta não será famosa, mas, naquela altura, ainda com pouca "rodagem", pouco mais watts debitava que a fidelíssima candeia de azeite, de torcida, que ainda alimentava muitas casas da terra. Ora, atendendo a que esta condição era um óbice para que a Banda tivesse um desempenho aceitável, havia que tentar melhorar as condições e, para tal, melhor remédio não havia do que recorrer a uma meia dúzia de voluntários que, marchando por entre as filas dos músicos, e de Petromax à cabeça, tropeçando aqui e ali, lá iam dando luz àquelas sombrias pautas. Não era que o trecho fosse desconhecido dos intérpretes; muitos deles até sabiam aquilo de cor e salteado, mas com os candeeiros de camisa e petróleo sempre a coisa ficava mais facilitada. 
A certa altura da marcha, quando alguém se apercebia que havia por perto uma porta que se abria, e dela saía uma alma caridosa que se propunha doar uns figuitos passados, umas broas de milho e uns cálices de aguardente, passava a palavra ao músico Silvestre Caipira, que, na figura de maestro interino, dava ordem de paragem ao cortejo e, em simultâneo, o início da beberrice. Isto, como está bom de ver, tanto para os músicos como para os acompanhantes. Muitos destes, sabendo que, numa ou noutra casa, havia figos e bagaceira de borla, à descrição, trocavam o "vale de lençóis" pela friagem agreste da madrugada invernosa, só para satisfazerem as suas gulas alcoólicas. Que me lembre, ninguém rejeitava carga. E se, àquela hora da madrugada, estava iminente o ritual diário do "matar o bicho"... de graça, melhor seria.
Mas era assim que, durante algumas décadas, se comemorava o 1º de Dezembro na minha terra.


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O MAR VAI SUBINDO

O MAR ESTÁ A SUBIR para níveis já antes atingidos.
É lamentável o que vou escrever, mas, infelizmente para muitos, a começar pelo extenso rol de amigos que tenho na Outra Banda, é a dura realidade. 
Não sou eu que o digo, até porque, para o universo científico, o "fenómeno" está mais que provado.
Há precisamente 42 anos, estava eu na execução da Obra da Marina de Vilamoura, pelas Construções Técnicas, quando, devido a um problema de "levantamentos de fundos" e jatos artesianos, foi solicitada a presença na Obra do nosso geólogo dr. Ricardo Marques, a fim de emitir um parecer técnico sobre o que considerávamos uma grande anomalia. Este técnico, num momento de pausa, a meio da sua intervenção, olhando a Leste para os montes que formam a Serra do Caldeirão, disse-nos: - "Pois é, meus senhores, o mar está no movimento ascendente. Ele (mar), para desespero da humanidade, ainda vai ocupar os níveis de outrora. O processo irá levar muito milénios? Claro que sim. Mas é real. - sem se deter - Há dois meses, participei num estudo, em trabalhos de sondagens na encosta daquela serra; sabem o que de lá saiu, das suas entranhas, ao longo de alguns quilómetros? Foram fósseis! Fósseis, de tudo o que tem a ver com bivalves e outra espécies marinhas."
Na ocasião, nenhum de nós (éramos 5) ficou incrédulo. Até porque era o testemunho de um especialista com créditos firmados, mas hoje, diante de acontecimentos como os da notícia, só nos podemos resignar. Resignar e dar conhecimento às gerações vindouras do que terão que fazer, que é instalarem-se, aos poucos, durante alguns milhares de anos, em zonas de cota altimétrica mais elevada.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Por que nos tratamos por Dr. ou Eng.º? - dn - DN

Por que nos tratamos por Dr. ou Eng.º? - dn 

Uma das características mais visíveis da cultura portuguesa - e certamente da cultura de gestão portuguesa - é a propensão para o uso de títulos académicos. O uso de títulos (Dr., Eng.º.) é certamente mais praticado em algumas organizações do que noutras, mas, na comparação com outros países da União Europeia (UE), os portugueses são pródigos no uso de títulos. É aliás frequente, nas situações em que se conhece menos bem o interlocutor, colocar um cauteloso Dr. antes do nome. Na dúvida, antes a mais que a menos.

Esta propensão nacional para a utilização dos títulos pode naturalmente ter diversas explicações, mas uma das mais plausíveis pode ser encontrada no monumental trabalho de campo desenvolvido por um sociólogo holandês, Geert Hofstede. O seu livro Culture's Consequences, originalmente publicado em 1980, é uma obra de referência dos estudos de gestão transculturais. Neste trabalho, Hofstede tomou a cultura como variável independente ("causadora" de outras variáveis) e procurou analisar as suas implicações para o funcionamento da sociedade e das organizações. O trabalho deste ex-director da IBM sugeriu que as diversas culturas nacionais podem ser caracterizadas de acordo com um conjunto de quatro dimensões individualismo/colectivismo, evitamento da incerteza, masculinidade/feminilidade e distância hierárquica. Destas dimensões, a última, distância hierárquica, é particularmente relevante para a resposta à questão que aqui se discute.
A distância hierárquica reflecte o grau de deferência que os indivíduos projectam sobre os seus superiores hierárquicos, assim como a necessidade de manter e respeitar um certo afastamento (social) entre um líder e os seus subordinados. Nos países e regiões de elevada distância (e. g., Portugal, Espanha, América Latina, Ásia e África), superiores e subordinados consideram-se desiguais por natureza. A distância emocional entre chefias e subordinados é elevada. Detecta-se uma grande reverência pelas figuras de autoridade, e atribui-se grande importância aos títulos e ao status. Ao contrário, em países com baixa distância hierárquica (e. g., EUA, Grã-Bretanha e países não latinos da Europa), a dependência dos subordinados relativamente aos chefes é limitada. Os primeiros não sentem desconforto considerável por contradizer os segundos. Uns e outros consideram-se iguais por natureza.
Nos países com distância hierárquica tendencialmente mais elevada, o uso de símbolos de status representa portanto uma forma de explicitar e de assinalar o reconhecimento das distâncias entre pessoas pertencentes a diferentes escalões sociais ou organizacionais. A distância tende a aumentar a dificuldade de comunicação franca entre líder e equipa. Por exemplo, observava recentemente um gestor do Norte da Europa expatriado em Portugal que, quando perguntava aos elementos da sua equipa se estavam de acordo com ele, a resposta era sempre afirmativa. Surpreendido com tão consistente e persistente acordo retomou a discussão perguntando se estavam mesmo de acordo ou se estavam a procurar ser obedientes. A resposta é fácil de adivinhar. C
Para desenvolver o assunto- DN

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Cena XXI-CT-CIMPOR - Alhandra (1975)

- Outra vez o Santos (Muleta Negra) –
O já nosso bem conhecido Artur Santos, também conhecido pelo Muleta Negra, tinha nesta obra, além da função de angariador de mão-de-obra, a de zelar pelo funcionamento das instalações do pessoal. Neste período conturbado, ele nunca teve medo das ameaças da Comissão e enfrentava-a mesmo, quando a isso era obrigado. Nunca escondeu a sua simpatia pelo PPD de Sá Carneiro e ameaçava os comissionistas, dizendo: “se alguma vez me tentarem sanear, garanto que lhes limpo o sebo a todos!”
Bem, isto para dizer que eu, tirando partido da situação, resolvi pregar uma partida às duas partes, isto é, ao Santos e, indirectamente, aos que o perseguiam ideologicamente. Para isso, redigi uma carta dirigida ao Muleta Negra, como sendo escrita e remetida pelo Núcleo de Moscavide do PPD. Francamente, nem sabia se existia algum centro político com aquele nome, mas, para o caso tanto fazia. A intenção era arranjar maneira de dar ao Santos mais poderes e confiança, que o motivassem nos combates verbais que travava, amiudadas vezes, com os inimigos de ocasião.
Peguei em letras de borracha, daquelas que, na altura, se usavam para fazer legendas em desenhos e, com elas, fiz uma composição que dizia:
PARTIDO POPULAR DEMOCRÁTICO
- Núcleo de Moscavide –
            Coloquei o endereço, em nome do Artur Santos, selei o envelope, dirigi-o para a obra da Cimpor, em Alhandra e, na ida para o ISEL, desviei para a estrada de Moscavide, onde o meti num marco de correio. Além de mim próprio, quem mais sabia disto era o meu colega Dionísio Pinheiro. E, dois dias depois, lá chegou a missiva à posse do Santos. E sabia que ela chegara, porque o nosso amigo não esperou muito tempo para dar largas ao seu contentamento, correndo a mostrá-la a todos os que ele considerava serem influentes na manobra política da obra. Para isso, caminhou até ao Armazém e foi dá-la a ler ao chefe da Comissão, Manuel Simão. Depois, seguiu para o escritório e, aqui, além de ter mostrado o conteúdo da carta a mim e ao Dionísio, passou pela Sala de Desenho e fez o mesmo aos que lá trabalhavam. Não satisfeito, foi mostrá-la ao diretor da obra – na altura o engº Amaral – e percorreu parte da obra dando conhecimento daquele facto que, para ele, era primordial no confronto com os comunistas.
            No momento em que o Santos me entregou a carta para ler, confesso que senti uns calafrios. Pensei, e disse ao Dionísio:
            — Tu queres ver que este gajo é capaz de ir ao PPD de Moscavide para agradecer os elogios de que é alvo na carta e, ao mesmo tempo, mostrá-la àqueles PPDs!? Isto, admitindo que existe mesmo aquele Núcleo… mas cheira-me que, mais cedo ou mais tarde, a bronca vai estalar.
            O meu colega ria e ria, mas eu é que já não achava graça à cena. Deixei passar mais um ou dois dias, para não quebrar o sonho do Muleta Negra, e achando que era altura de esclarecer o caso, chamei o Santos ao escritório e, só com ele naquele espaço, desfiz o tabu. Como era de esperar, o nosso amigo não acreditou que a carta fosse falsa. Mas perante a garantia de como e o porquê da mesma, um bocado a custo lá se convenceu. Pedi-lhe que queimasse a carta, para que não viéssemos a ter problemas com o PPD, mas ele, pensou melhor e propôs-me:
            — Sr. Caria Luís, agora sou eu que lhe peço para não divulgar a falsidade da carta. É que assim, sempre que os comunistas me chateiem, eu mostro-lhes que posso fazer-lhes frente.
            A obra estava perto da sua fase final. Desde a hora em que saí para outro local de trabalho - que, no caso, era Marrocos - nunca mais vi o Muleta Negra, o tal PPD que não suportava comunistas.

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Extrato de "DEGRAUS E MARCOS DA VIDA", Vol. II

terça-feira, 3 de junho de 2014

50º aniversário da Inspeção Militar


 GRANDE RAPAZIADA!
Em 1944 nasceram, em Vale da Pinta-Cartaxo, quinze almas do sexo masculino. 
Depois da passagem dessas individualidades pela Primária, cada qual seguiu o seu tortuoso caminho, até serem considerados "homens" que, já encorpados, poderiam e deviam prestar o seu contributo à Pátria, militarmente falando.
Antes, porém, houve dois mancebos (eu e o Roberto), cada qual pela sua razão, que acharam por bem optar pela "deserção" do grupo e enveredar pelo voluntariado, no ramo da Força Aérea. Os outros treze foram, em junho de 1964, encaminhados para aquele ritual da Inspeção Castrense, à mercê, portanto, da Inquisição Militar do Exército. Salvo duas exceções que, por questões que se prendiam por quaisquer insuficiências físicas, foram "libertados", aos restantes onze foi lida a cartilha que, segundo a mesma, eram os "contemplados" obrigados a dar o corpo ao manifesto, em prol da Pátria e do Sistema. A maioria acabou por ir parar ao então chamado Ultramar, passando a fazer parte dos combatentes da Guerra Colonial. Felizmente que, desta malta, todos voltaram sãos e salvos.
Acabadas que foram as campanhas militares e tendo cada qual seguido o seu caminho profissional, fosse por isto ou por aquilo, nunca mais ninguém se "lembrou" de promover um encontro dos membros do grupo de 1944, que, até ao ano 2000, passaram por um total jejum no que a confraternizações dizia respeito. 
Sei que, depois da mudança de século, alguém se lembrou, enfim, de tentar uma aproximação dos "rapazes" e eternizar o evento. Eu, devido ao facto de estar ausente da terra por motivos profissionais, só comecei a participar no evento no ano de 2008, ano em que atingi a idade e o estado de Reforma.
Mas, por muito estranho que pareça, eu, estando fora, não era o único faltoso nem mesmo poderia ser considerado um refratário. Se um tipo reside em Oeiras, em Lisboa, em Tomar, ou mesmo em Aveiro, poderá argumentar que, enfim, está "longe" e não lhe dá jeito nenhum vir à terra uma vez por ano? E eu, que resido no Porto? Mas estes que refiro, ainda são uns bacanos, se os compararmos a um colega que, residindo a tempo inteiro em Vale da Pinta, renunciou ao convívio desde 2010. Há quem diga que foi motivado por "isto", outros afiançam que foi por "aquilo". Seja como for, se é por dispender 20€ por uma refeição bem "regada" e tendo o pazer de confraternizar com os "amigos de 44", e ainda com transporte gratuito, não me parece que tais atitudes sejam plausíveis. No entanto essas ficam com quem as pratica. Seja por comodismo, snobismo ou sovinice, acho que têm que aguentar com as críticas.
Independentemente do número de convivas, vamos acreditar que para o ano há mais.

Fig. 1 - ano de 2009 - Adega do Avô - Casais da Amendoeira
Fig. 2 - ano de 2013 - Cernelha - Cartaxo
Fig. 3 - ano de 2014 - Cernelha - Cartaxo - 50º aniversário















terça-feira, 29 de abril de 2014

Cena XX - nas C.T. - Marrocos (1977) - Al-Hoceima

the pearl of the mediterranean - Al Hoceima, Al HoceimaUm Sábado em Al-Hoceima                      Para estrear, a sério, a bomba e o chauffeur, nada melhor que fazer uma viagem mais longa do que ir e vir de Oujda. Noventa quilómetros nem davam para aquecer o motor. Ir à zona balnear de Saidia, segundo o Santos, também não seria a viagem ideal. Pese embora já serem para aí uns cem quilómetros para cada lado, as estradas eram demasiado planas e horizontais para pôr a viatura à prova. Pensando melhor, porque não ir até Al- Hoceima? Seria o ideal. O traçado rodoviário era muito variado: ora segmentos de reta, ora curvas e contracurvas; uns planos horizontais e outros inclinados, enfim, era esta variedade de condições que iria garantir um perfeito teste à máquina do Sete Línguas. Eram duzentos e cinquenta quilómetros para cada lado, mas que se lixasse! Ainda por cima, a gasolina em Marrocos era ao preço da uva mijona, porque não avançar para aquela cidade do Mediterrâneo, em plena zona dos berberes[1]?
         Este povo falava a sua própria língua, a berbere que, por estranho que pareça, era também falada pelos distantes tuaregues. Sendo minoritária, nunca se chegou a impor e até nunca foi tida como escrita. Aqui nesta zona do Rif, a língua castelhana era a mais utilizada.
O esquema traçado para a viagem visava um caminho menos acidentado para a ida e, no regresso, embora com algum sacrifício pela travessia das montanhas do Rif, fariam uma paragem na Barragem Mohamed V que, dizia quem conhecia, era um espanto. Como nunca antes tinham ido para aqueles lados, nunca se sabia o que se poderia encontrar; além do mais, o modo como o carro se comportaria era uma incógnita. Mas eles iam partir cedo, às 6h00, como combinado. O percurso, segundo os informaram, demoraria umas quatro horas para cada lado e eles queriam evitar viajar de noite. Assim, o Santos pegou na bomba e saiu do estaleiro às 06h00. Entrou na Nacional 6, virando à esquerda e seguiu para El Aioun, onde ia recolher o "patrão" Sete Línguas.
Resumindo, em traços gerais, soubemos que, a partir de El Aioun, continuaram pela N6 e, 20 km mais à frente, deixaram esta via e entraram numa estrada secundária que os levaria até à povoação de Mechra Hommadi. Seguiram em frente, com passagem por Hassi-Berkane, onde entraram na N19. Passaram por Douiria, Mont Arruit, já na N2, – onde pararam para comer alguma coisa – seguiram por Driouch, Boufarkouche, Talamagait, Imzouren e chegada a Al Hoceima, por volta das 11h00.
Ali chegados, deixaram o carro. No firme propósito de desentorpecerem as pernas, caminharam pelas zonas mais antigas da cidade, a fim de apreciarem aquelas ruas estreitas e casas branquinhas que, dispostas em anfiteatro, transmitiam uma onda poética a quem teve a felicidade de as conhecer.
De tanto andar de carro e depois de palmilharem cerca de uma hora e meia ruelas adentro, as dores nos pés e a fome começaram a tomar conta deles. Para remediar esta segunda pecha, era fácil, pois não faltava ali onde comer, mas remédio para a primeira já era mais difícil. Eles precisavam de descanso, descanso sentado e, se arranjassem por ali perto onde dar ao dente, aproveitavam a embalagem e sentavam-se um bocado, para aliviar o que estava dentro dos calcantes[2]. E foi numa churrasqueira que abancaram, para saborear o belo frango na brasa, acompanhado com cerveja marroquina servida por debaixo da mesa.
Terminado o repasto, acharam que faziam bem em dar uma voltita pela zona mais moderna da cidade, talvez para estabelecer uma comparação entre a nova e a velha. E assim foi. Ao virar de uma esquina, o Sete Línguas parou e deteve-se em frente a uma montra, de onde ressaltava um sapato que lhe estava mesmo a cair no goto. Mas, entretanto, através da montra, reparou que no interior da loja estavam duas meninas de bata azul, que, depreendeu, seriam empregadas. O Santos, que ia ligeiramente adiantado, virou-se para trás e gritou para o "patrão"[3]:
— Então, Silveira, vamos embora, que se faz tarde!
— Ó Santos, chega lá aqui! Tenho os sapatos todos descambados e gostava de comprar aqueles, os castanhos, mas tenho as meias rotas!...
O Santos, armado em macaco, sossegou o Silveira:
— Mas, ó Silveira, isso não constitui problema! Eu sei falar um bocado de espanhol e, enquanto você experimenta os sapatos, eu entretenho as gajas! Entre lá!
O nosso amigo Sete Línguas, cheio de boa fé e confiança no Santos, entrou. Depois de cumprimentar as meninas, apontou para aqueles sapatos que lhe tinham causado tão boa impressão. Dizendo que calçava o 42, pediu para experimentar uns. Uma delas abriu um gavetão e de lá tirou um par de sapatos, que pôs à disposição do Silveira. Este retardou a operação da experimentação, esperando que o Santos entabulasse conversa com as meninas, o que aconteceu. Sentindo o caminho livre, descalçou os velhos sapatos e, meio desconfiado, enfiou os pés nos novos. Estavam apertados. Nisto, diz o Santos:
— Então chefe! É hoje ou amanhã?
O homem, sentindo os pés apertados, ainda tentou que o amigo (?) voltasse a entreter as meninas, mas isso não foi possível porque o Santos já tinha esgotado os seus argumentos em espanhol, e as meninas estavam ambas concentradas no apoio a dar ao cliente.
Finda a operação, enquanto o Silveira puxava pela carteira, uma das meninas pegou nos sapatos velhos e fez menção de os colocar no caixote do lixo. A um aceno de cabeça do Santos, a confirmar o gesto da menina, esta não foi de modas, e os descambados sapatos foram mesmo para reciclagem, coisa a que, na altura, o Silveira não se opôs.
Eram três da tarde, e não havendo mais nada que os retivesse por ali, foi tempo de pegar na bomba e zarpar de regresso a El Aioun.
Conforme planeado, o itinerário do regresso seria diferente do da ida, sendo que, desta vez, passariam pela Barragem Mohamed V. E lá foram eles estrada fora, pela N19, de modo a chegarem àquele complexo hídroelétrico ainda com a luz do dia. Em condições normais, sempre seriam umas três horas de caminho. Mas isso seria em condições normais, porque em situação anormal, ninguém pode ter a veleidade de o saber.
Após três horas de viagem, pela quilometragem feita eles sabiam que a Barragem já não estaria longe, mas o Belzebu do Rif[4], que estaria por perto, à espreita do exato momento para atacar, resolveu acabar com a boa disposição do duo, avariando-lhes a instalação elétrica da iluminação do carro.
O motorista de ocasião, saiu do carro, abriu o capot, acendeu o isqueiro e vasculhou visualmente aquela panóplia de cabos e fios entroncados uns nos outros, tendo concluido que o busilus devia estar na parte elétrica, na vertente da iluminação, já que o motor trabalhava. Mas o Santos a ver aqueles fios todos, era como um boi a olhar para um palácio. Coçou a cabeça, deu um pontapé num pneu e, com um desabafo próprio das gentes do Norte, gritou para o Sete Línguas:
— Ó Silveira! Estamos quilhados, carago! Esta merda não dá nada! E agora? Nem uma merda de um mapa para ver onde estamos!
O Silveira era o patrão, mas, numa situação daquelas, ele não mandava nada. Se ele era apenas especialista em Línguas e em Botânica – e agora, na obra, a atar ferro - que obrigação tinha ele de perceber de eletromecânica? O Santos é que tinha a responsabilidade moral e material de levar a bomba a bom porto. Não era só gozar a condução daquela bela máquina, passear, comer e beber à conta do orçamento do Silveira… o que era isso?
E com uma grande lata, pergunta ao outro, “E agora?”
            Mas o Silveira, com os olhos esbugalhados e uma lágrima ao canto de um deles, fruto da emoção do momento, também não foi mais expedito que o Santos, já que respondeu na mesma moeda, isto é, com um sonoro “E agora?” Mas essa era uma pergunta que o chauffeur já tinha feito. Numa situação embaraçosa como aquela, a prenunciar noite escura, abandonados pelos deuses numa curva da estrada, num ermo em plenas faldas das montanhas do Rif, possivelmente infestadas por 40 ladrões da seita do Ali-Babá, o que se pedia, e era premente, era lucidez, cabeça fria e umas pitadas de valentia. Mas, por enquanto, eram só lamentos e ais. Depois, sem solução à vista, sentaram-se nos bancos da viatura, esperando que alguma alma milagrosa, a viajar de carro, passasse por ali e lhes desse uma ajuda. Mas qual quê! Até agora – e já decorrera mais de meia hora – o que por ali tinha passado eram corvos e mochos que, com o seu sinistro piar, mais agudizavam o medo que ambos sentiam. Se ainda, ao menos, estivesse luar... mas esse desiderato não lhes foi concedido, já que essas historietas de: “ Y la luna parece un turbante de plata perdido de Alá”, era só na canção de Los Tamara, que não passava de teoria barata para enganar os românticos. A não ser que essa mesma luna, naquela noite, só aparecesse a quem estivesse no deserto do Sahara. Ainda assim, não sendo crentes no Alcorão, decerto não esperariam uma bênção de Alá, só porque estavam em apuros.
            A noite avançava, e para quem fazia tanta questão de visitar a famosa Barragem Mohamed V, a visibilidade já era. O Silveira lamentava-se. Lamentava-se, não apenas pela sua bomba, mas porque os seus pés, envoltos numas coisas de cabedal, a que chamavam sapatos, mas que para ele eram duas autênticas prensas, já estavam a chegar ao limite do sofrimento.
Cansados, descoroçoados, e quando preparavam a mente para dormitarem cada qual por seu banco, eis que aparece um raio de luz ao fundo da curva. Não havia dúvida: eram os faróis de um carro. O Santos, mais destemido que o Sete Línguas, deu um salto para o meio da via e com os antebraços na horizontal e as palmas das mãos abertas, viradas ao céu - como já vira os marroquinos fazerem na obra aquando das suas preces - fez frente à viatura que se aproximava. Quem conduzia o carro, sabia bem de quem se tratava. Não porque se detetasse, logo à primeira vista, que os sitiados eram portugueses; eles até podiam ser espanhóis ou italianos, mas, pela indumentária, árabes é que eles não seriam mesmo. E foi por isso que o enviado de Alá, resolveu parar, sem receio. Tivessem os portugueses a infeliz ideia de exibir, na tola e no corpo um turbante, uma gilaba ou um albernoz,  mesmo que fosse só como recordação, e nunca aquele condutor marroquino tinha parado a sua carrinha de caixa aberta naquele ermo.
            Mas, agora, um novo problema surgia: é que o homem, a quem podemos atribuir o epíteto de socorrista, não pescava uma única palavra de francês, espanhol e, ainda menos, de português. Perante esta embaraçosa situação, o Santos que, pelos vistos, percebia alguma coisa de mímica, lá se fez entender ao socorrista. E, gesto p'ra cá, gesto p'ra lá, ficaram a saber que a Barragem estava apenas a uns três quilómetros dali. O que, sobremaneira, os animou. Foi então que o Santos tentou fazer entender ao marroquino que precisavam do seu auxílio no sentido de os rebocar - no sentido figurado, já se vê – indo à frente, a abrir caminho e, deste modo, já o Opel Rekord 1900, podia chegar, em segurança, às portas da Barragem. Mas o maometano, ou por não perceber a jogada, ou por ter mais que fazer, marimbou-se na rudimentar mímica do Santos e, a todo o gás, desapareceu naquela noite escura como breu, para não mais ser visto.
            Com tudo isto, já se perdera quase uma hora e a situação pouco mais tinha evoluído. Ao menos, tinham ficado a saber que a Barragem estava ali relativamente perto. Perto para o Santos, que não para o Silveira, e já vão ver o porquê. É que o condutor tinha de conduzir e, para isso, ia dentro do carro, mas então quem é que orientava o rumo, em plenas estrada cheia de curvas, numa noite carregada de escuro? Como não havia por lá mais ninguém, era claro que o guia só podia ser o Sete Línguas! Este, a princípio, recusou tal ideia, alegando que, além de ser o patrão, também tinha os pés feitos num nó, tão doridos estavam. E argumentava:
            — Ó Santos, eu mal sinto os pés! Tenho a certeza de que o sangue já nem circula por aqui, e agora tenho que fazer de guia?
            — Ó Silveira, você vai à frente, de braços abertos, com dois cigarros acesos, um em cada mão e, assim, chegamos ao raio da Barragem, sãos e salvos. Porque, se você continuar na sua, a teimar em não alinhar como guia, o que pode acontecer é que eu, não conseguindo vislumbrar a berma da estrada, me despiste e vamos os dois bater com os cornos lá no fundo do precipício. E o carro, esse, fica no fundo do vale, feito em bosta. Agora escolha!
            O Silveira ainda aguentou uns quinhentos metros, a trote, mesmo parando e retomando a marcha várias vezes, mas depois, chegou o fim. O corpo humano não é de ferro. Há limites para tudo e também para os pés do "patrão" que, agora, numa situação de subalternidade, já não mandava nada, nem, tão pouco, nos pés.
            Os pés, como se sabia, estavam no fim, mas a cabeça, essa ainda funcionava. Ao ralenti, mas funcionava. Tanto assim era, que o dono dos pés, e dos sapatos novos, lembrou-se que tinha uma alternativa que, até então não lhe tinha ocorrido: era descalçar os malditos sapatos e trotar descalço. Que diabo, em piso asfaltado que mais queria ele? Descalçou-se e trotou. Os pés, agora livres de engulhos, já eram lubrificados pelo sangue que, antes encontrara o caminho obturado.
            Depois desta tortura, chegaram ao portão da Barragem. O Santos dirigiu-se ao guarda de serviço e este, simpático, já a fazer-se à gorjeta, chamou o eletricista de turno que, de pronto, e de modo fácil, resolveu aquele intrincado problema elétrico na instalação do Opel Rekord 1900, a que o Sete Línguas chamava a sua bomba.
            Dadas as gorjetas e feitos os agradecimentos, com vénias e tudo, lá vieram aquelas duas almas meias depenadas e bastante constrangidas, estrada N19 fora, até El Aioun, onde o Santos deixou o "patrão" Silveira e seguiu até ao aldeamento do estaleiro, onde arrumou a viatura. Eram para aí umas onze da noite.
            Mas, durante esta última fase da viagem, como se o sofrimento não bastasse, o Silveira ainda teve que ouvir um raspanete do Santos por causa do raio das línguas:
            Dizia o chauffeur:
            — Então, você é que era o tal Tradutor, que vinha para Marrocos fazer de intérprete e eu é que tive de falar com as gajas? E com o gajo da carrinha? Se não fosse eu, com a minha mímica, ainda agora lá estávamos, à espera de não sei quê. O Silveira não gostou e ficou um bocado agastado com o inoportuno provocador, mas não retorquiu. Ele bem sabia que o Santos era chanfrado da mona e, se o chateasse mais, ainda era capaz de o deixar a ele e ao carro ali no meio da estrada e caminhar a pé no resto do percurso.
            A bomba, essa ficava à guarda do chauffeur até ao dia seguinte, altura em que o dono iria buscá-la, para ser ele próprio a desfrutar daquela máquina. O dono do carro andava a tirar a carta e, segundo a lei, mesmo em Marrocos, sem a permis de conduire, ainda não se encontrava habilitado a pegar naquela ou em qualquer outra bomba. Mas a obtenção da carta estava para breve.

Extrato do livro "DEGRAUS E MARCOS DA VIDA", Vol. II
Nota: O Santos era encarregado de Armaduras e chefe do Silveira. O Silveira, que se dizia licenciado em Botânica pela Universidade de Coimbra, era um ex-Tradutor que, por tão fraco desempenho, foi despromovido a Armador de Ferro.


[1] Povo do norte de Marrocos, com língua própria, não oficial
[2] Sapatos
[3] Era o patrão, porque, hoje, ele pagava tudo
[4] O Diabo mas montanhas


quinta-feira, 20 de março de 2014

- Acordo ou desAcordo Ortográfico -

Com A.O. ou sem A.O.?


Só sei, pelo que vou lendo. Nada mais.

Já que tanto se tem falado (bem e mal) do diabólico Acordo Ortográfico, entendo que, também eu, tenho o direito (limitado) de opinar sobre tal temática. Para tal, peço desculpa aos verdadeiros intelectuais pela ousadia, por algum erro ou imprecisão que, na minha análise, possa ter cometido.

Há tempo, antes de me pôr a escrever o livro "Degraus e Marcos da Vida", e tendo em conta o tão propalado e controverso tema, fiz umas consultas ligeiras e li:
- "Texto mais antigo da Língua Portuguesa" (séc. XII)
- "Crónica de D. Fernando", por Fernão Lopes (séc. XV)
- "Poemas Manuscritos de Bocage" (séc.XVIII)
- Eça de Queiroz e Almeida Garrett (séc. IXX)
- Guerra Junqueiro (séc. XX)
- "Método Elementar de Latim" (1935)
- Novos Prontuários Ortográficos - 3 unidades (2008)
- Priberam - Dicionário Web (atual)

 Daqui concluí que, devido às metamorfoses operadas na Língua Portuguesa desde, pelo menos, o ano de 1175, passando por todos os séculos dos séculos, eu sentia a obrigação de me adaptar à nova realidade, sob pena de ficar para trás. Apercebi-me de que, através dos tempos, entre Acordos e Desacordos, muita coisa mudara na Língua Portuguesa. E a verdade é que, até certa altura, pelo menos até ao ano de 1500, ninguém tinha noção do que era essa coisa de Brasil.
Perante estes e outros factos históricos, achei que seria sensato alinhar pela linha do projeto do A. O., que, pasme-se, data de 1990.
Se os outros através dos séculos, acharam que deviam atualizar-se, porque havia eu de, logo à partida, ficar para trás não acompanhando o progresso?
Deparei-me, então, com coisas como estas:
latim português espanhol francês italiano
accidens acidente accidente accident incidente
cursus estrutura estructura structure struttura
objectu objeto objeto objet ogetto
projectu projeto proyecto projet projetto
uictoriam vitória victória victoire vittória
Algum Português já antes desatualizado, sendo algum do Bocage:
Vergílio espôsa baptismo offendem
Luiz prêsa baptizado elles
Víctor bella vans immutável
têrmo mortaes innocente damnados
pharmácia víctima taes producção
êste systema Deos cousa
Já toda a gente aceitou a evolução?

Nota: o Português vem do Latim, mas, também do Grego.

Há pessoas, que à conta do A.O., insistem em escrever mal certas palavras, tentando baralhar quem as lê.
facto / fato / adepto / compacto/ pacto / pato / opção/ secção, etc., são exemplos de que as consoantes inseridas são para serem lidas.
latim português latim português
.Albam .branca .Octo .oito
.Argentum .prata .Per .por
.Bellum .guerra .Quinque .cinco
.Clarus .ilustre .Septem .sete
.Crinis .cabelo .Solemmnis .solene
.Dictactura .ditadura .Vacca .vaca
.Labor .trabalho .Volo .querer
Foi por tudo isto que adotei o chamado novo A. O.
Veja-se a documentação no topo da folha.
Nota: Com a presente compilação, apenas pretendo justificar e dar resposta à opção tomada, no que concerne ao método utilizado na feitura dos textos do referido Livro. 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

CENA IXX - Nas CONSTRUÇÕES TÉCNICAS em MARROCOS - Controlo de Velocidade



11.9 – Os gendarmes e os esquemas
a) - O controlo de velocidade -
A polícia marroquina tinha uns métodos muito sui generis de atuar. Fosse no controlo de trânsito e aplicação das multas respetivas, na intervenção em qualquer desavença, ou mesmo no ato de subtrair acompanhantes do interior das viaturas, eles, polícias, atuavam de uma maneira muito peculiar. Por exemplo: fui, por várias vezes, mandado parar pelas patrulhas de trânsito, tanto à saída como à entrada de Oujda. Algumas vezes, o argumento por eles utilizado era um alegado excesso de velocidade, noutras, era um controlo de luzes das viaturas. Mas tudo isso seria normal, não fora os métodos e apetrechos utilizados.
Em todas as madrugadas, saíam da cidade de Oujda, a caminho da obra, pr'aí uma dezena de viaturas. Quase todas Renault 4L, de cor branca, com matrícula marroquina, mas conduzidas por portugueses, normalmente chefes de serviço. A polícia marroquina bem sabia disso. Eles conheciam-nos à légua, como se diz por cá. E como lhes cheirava a dinheiro, colocavam-se de atalaia, em pontos estratégicos, para tentar sacar alguns dirhams ao nosso pecúlio. Como se compreende, o responsável por cada uma dessas carrinhas não viajava sozinho. Havia chefes de equipa e manobradores portugueses que, tendo optado por levar a família de Portugal para Marrocos, aqui alugaram casa. Estava então combinado que o seu transporte de e para a obra seria garantido por meio das ditas R4L. No entanto, em certas ocasiões, quando, por qualquer motivo, havia uma vaga, até alguns dos nossos empregados marroquinos chegaram a viajar connosco. E foi mesmo num dia em que essa situação se verificou, quando eu trazia, de boleia um serralheiro marroquino, que habitava em Oujda e pertencia à oficina do Pimpão, que fui intimado a parar por uma patrulha de gendarmes. No caso do controlo de velocidade, foi assim como se descreve.
Quando, à saída de Oujda, a caminho da obra, depois de ter percorrido aquela reta, de uns quatrocentos metros, onde se situava a delegação do Ministério dos Transportes, fui mandado parar por uma patrulha de gendarmes. Aqui, no termo do dito tramo, e ao sinal da placa circular de Stop, parei. Parei e esperei pela abordagem das autoridades. Os guardas, aproximaram-se, e, já fartos de saber que o fulano que conduzia a Renaul 4L era português, lançaram um olhar frio, misto de arrogância e ameaça, ordenando (em francês, agora traduzido):
— Bom dia!
— Bom dia! – respondi.
— O senhor vai passar para cá os documentos. – e eu entreguei-lhes os documentos. Viram, reviram e disseram:
— Agora, vai ter que pagar trinta dirhams pela multa do excesso de velocidade em que circulava. – ordenaram.
Eu, que já sabia como é que aquela cena das multas funcionava, retorqui:
— O quê? Excesso de velocidade? Nem pensem! Eu vinha para aí a uns 37 ou 38 km/h, não mais.
— Não, não! O senhor, que bem sabe que, aqui, o limite de velocidade é de 40 km/h. Como vinha a muito mais, está em transgressão.
Na época, ainda não existiam as pistolas de controlo de velocidade, quanto mais estas sofisticadas maquinetas eletrónicas, que os maganos utilizam nos esconderijos só para nos lixarem o dinheiro e, muitas vezes, a própria carta de condução. Ora, por isso mesmo, eu sabia que eles estavam a atuar a sentimento e não com qualquer base credível que os habilitasse a aplicar-me qualquer coima. E foi com o propósito de confrontá-los com aquele, quanto a mim, precário argumento, que lhes perguntei:
— Como é que os senhores gendarmes, que não possuem qualquer equipamento eletrónico que vos permita concluir a que velocidade é que eu circulava, justificam essa vossa ação de pretenderem aplicar-me uma coima por uma infração que não cometi?
Os tipos, mostrando impaciência, reagiram assim:
— Bem, o senhor vai com pressa, e como nós estamos a acabar o turno, a multa fica por quinze dirhams e não se fala mais nisso.
— Não pago trinta, nem pago nada! Aliás eu não vinha em incumprimento. – ao que os gendarmes reagiram:
— Repare o senhor: quando avistámos a viatura no início da reta, pusemos os segundos do relógio a zero; agora, assim que passou naquela árvore de tronco pintado de branco, o tempo decorrido foi de trinta e dois segundos. Ora, como a distância entre os dois pontos é de quatrocentos metros garantidos, o tempo gasto nunca poderia ser inferior a trinta e seis segundos. É por isso que tem que pagar a multa.
Eu, ainda disse:
— Isso não é fiável! Logo, entre o tempo que decorre entre o vislumbrar a viatura e pôr o cérebro a raciocinar para, depois, acionar o botão do relógio vai um tempão. Este lapso de tempo repete-se na chegada, certamente. Além disso, a árvore está a mais de trinta metros do lugar onde a patrulha se encontra, o que vai, com toda a certeza, distorcer a imagem do momento da passagem em frente à árvore.
Eles estavam tão fartos de conversa fiada quanto eu, mas, no propósito de despachar freguês, e no sentido de abreviar a cena, tentaram novo desfecho, agora mais barato.
— Pronto. A multa fica por dez dirhams, e vamos à vida.
Foi então que o sacana do serralheiro marroquino, a quem eu tinha dado boleia, e viajava no banco de trás, puxou de uma nota de dez dirhams e, num ápice, à socapa, passou-a para as unhas do polícia. Este mandou-me seguir viagem, mas eu, que me tinha apercebido daquela operação da passagem da massa, ripostei, assim:
 — Eh pá, quanto deste ao gendarme?
— Dei os dez dirhams!
— Quem mandou? Não tinhas que os ter dado!
E, indignado, no sentido de me vingar pelo gamanço, exigi:
— Agora, os senhores gendarmes vão ter que passar o recibo da multa.
A esta minha exigência respondeu o chefe da patrulha:
 — Recibo? Nós só passaríamos recibo, se a multa tivesse ficado nos 30 dirhams inicias, mas como isso não aconteceu, como lhe fizemos um grande desconto, o senhor não vai ter direito a nada. E, e… já vai com sorte!
Queria ele dizer na dele, que o melhor que eu tinha a fazer era dar de frosques, dali para fora, com direção e sentido da Obra.
Senti-me revoltado, danado até. Voltei-me então para o palerma do serralheiro e desabafei:
— Ah grande sacana! Agora, o que eu devia fazer era pôr-te na rua! Devias era ir a pé, para não seres burro.
E, para descarregar o resto da ira, ainda disse ao rapaz:
— Além de não veres nem um cêntimo desse dinheiro, nunca mais te dou boleia!
O rapaz, dali até à Obra, talvez uns 35 kms, lá foi tentando convencer-me de que pagou os dez dirhams com medo de se tornar num alvo de retaliações por banda dos gendarmes. É que, segundo contou, sabia de casos de perseguições a amigos seus por banda da polícia, devido a situações idênticas. Isto é, ficavam marcados pelo olho sinistro dos bófias, que até passavam palavra aos demais. Enquanto os seus rostos não fossem esquecidos, andavam a ser permanentemente saqueados. Não sei bem se seria assim, mas, em Marrocos, onde se regateava o preço da multa como se estivéssemos na Medina a negociar uma manta, um albernoz, meia dúzia de figos-da-Índia ou um quilo de tâmaras, tudo era possível.
Passados dois dias, o chefe da oficina de serralharia, o Pimpão, veio ter comigo e pediu-me para esquecer o incidente, até porque o rapaz, mesmo tendo em conta as limitações locais, era um ótimo serralheiro. Isto quer dizer que, além de eu ter dado o dinheiro ao gajo, ainda lhe dava boleia, sempre que havia vaga.
 Eles tinham um grande pavor dos gendarmes, mas aquela cena do controlo de velocidade, não deixava de ter a sua parte cómica.

 Muitos condutores portugueses queixavam-se de que a polícia, sempre que os mandavam parar na cidade e topassem que a acompanhante era uma moça marroquina, ordenavam a imediata saída daquela, deixando o condutor como que apeado, a falar sozinho.

Texto extraído de "DEGRAUS E MARCOS DA VIDA", Volume II.