segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Cena XXII-Duplos ou Sósias, são atores portugueses



     Que grande novidade! São tugas!...

     Embora os sistemas não sejam exatamente iguais, a fraude está bem patente em qualquer deles. E, ao que parece, sempre com atores portugueses no elenco.
     Segundo o calendário Gregoriano (o nosso), corriam os anos de 1976, 1977 e 1978, enquanto por terras do Reino de Marrocos, e segundo o calendário muçulmano, se assinalavam os correspondentes anos de 1398, 1399 e 1400. E foi, precisamente, no nosso ano de 1976 que as Construções Técnicas foram de abalada até Marrocos Oriental, para aí, a uns 40 kms da cidade de Oujda, iniciarem a construção de uma gigantesca fábrica de cimento. Era a Cimenterie de l'Oriental. Ainda hoje - e durante muitas mais décadas - quem viajar pela EN 6, entre Oujda e El Aioun, poderá admirar aqueles esbeltos edifícios fabris que, no dizer da empresa inglesa (Oscar Faber & Partners), projetistas e fiscais da construção do empreendimento, era uma relíquia "perdida" no meio do planalto desértico com vista para o médio Atlas.
     O número que vou considerar, não sendo fidedigno não andará muito longe da realidade, se vos disser que neste empreendimento trabalharam cerca de 1500 pessoas, sendo que, cerca de 700 eram portuguesas. Como os portugueses eram muitos, as falcatruas e o oportunismo tinham que, de modo percentual, acompanhar o vasto lote lusitano. Então, além dos sornas, que para lá foram enviados pela Sede, depois de terem passado através das largas malhas da triagem, em que uma grande parte nunca tinha visto uma obra, nem ao longe, e passavam grande parte do tempo nas camaratas, fingindo-se doentes, também os xico-espertos dos semi-analfabetos e os de todo iletrados, vislumbraram um método que, a troco de uns 10 ou 20 dirhams, - conforme os casos - conseguiriam "tirar" a "permis de conduire". 
     Como é que a coisa funcionava? Como ninguém sabia uma única palavra de francês - e muito menos de árabe - a resposta aos questionários orais apresentados pelas entidades marroquinas, era dada por um ou dois intérpretes portugueses, cada qual em sua sessão. Lembro-me do Vieira e do Andrade e Silva, que, além de saberem à brava do Código de Estrada, também dominavam, com à-vontade, a língua de Victor Hugo. Um deles, o Vieira, pela sua vivência em Oujda, onde, há mais de vinte e cinco anos, era empregado num armazém de materiais de construção, até escrevia e falava árabe. 
     E era assim: a pergunta saía da boca do agente marroquino; o intérprete perguntava, o aluno não sabia, mas, como o esquema já tinha sido ensaiado, este nem sequer precisava de acenar com a cabeça, se sim, não ou talvez, pois que, ali ao lado, se perfilava a sua bengala. E insistia o inquiridor marroquino: - "Que ce qu'il dit?" - ao que o sapiente intérprete, depois de ouvir uma qualquer asneirada por parte do examinando, respondia limpinho, a contento, à questão formulada. 
     Tenho ideia de que não houve cão nem gato - a maioria dos quais nem a terceira classe tinha -  que não tivesse saído de Marrocos com a cartinha na lapela. E era assim que eles, quando, depois, vinham a Portugal, na sua nova "voiture", se apresentavam aos familiares e vizinhos, fazendo-os crer que, aquilo do tirar a carta num país estrangeiro, ainda por cima árabe, em que as letras mais parecem enguias entrelaçadas, não era para qualquer um. Tinha que ser um fulano possuidor de uma capacidade acima da média, como eles, para o conseguir.
     Na linha do português de então, a continuidade do portuga de agora. Duplo ou Sósia, que importa? São atores portugueses que, em termos de maestria, pedem meças aos demais. E mai nada!





sábado, 23 de novembro de 2013

Cena XVIII-O engº Marteleira na Cimpor-1976


- O batismo do engenheiro Marteleira, lá nas alturas –

            Este engenheiro estagiário era um daqueles fulanos que, de tão atípico, dava gosto ouvir o pouco que ele tinha para dizer.
            Creio que era natural e residente na povoação de Marteleira, Lourinhã e, soube mais tarde, que ele chegou a ser técnico da Câmara Municipal da Lourinhã. Como pessoa, era um fulano pouco expressivo, algo tímido, mas, se puxassem por ele, sempre dava troco a uma qualquer conversa. Desde que o tema não abordasse política, ele, de modo mais ou menos comedido, ia a todas. O Marteleira só não gostava de que lhe falassem de política, porque, nesse campo, queria manter, a todo o custo, um segredo que, para mim e mais algumas pessoas do escritório, já não o era de todo. E o que é que o levava a tentar esconder a sua tendência política? Era pelo simples (?) facto de ser simpatizante do CDS, de Freitas do Amaral. Pretendia ele passar despercebido no meio daquela multidão de comunistas (muitos); socialistas (poucos); sociais-democratas (poucochinhos) e direitistas, que se soubesse, só ele… O Marteleira estava mesmo em franca minoria. Na sua maneira de ver e no seu dizer, se os gajos da Comissão de Trabalhadores descobrissem que ele era do CDS, estava feito ao bife.
            Ele, como já disse, era engenheiro civil, na qualidade de estagiário e uma das coisas de que ele não gostava de fazer era ir à obra. Fora atirado para o Controlo e no escritório é que ele se sentia bem. Sempre era mais confortável do que ter de ir para a obra apanhar o tal irrespirável ar fabril. Mas ele estava enganado e mal informado, porque, qualquer que fosse a atividade específica que lhe tivessem confiado, para quem estava a dar os primeiros passos, era fundamental adquirir a raiz e as bases. Para isso, devia fazer vários périplos pela obra a fim de muito observar, questionar, muito ouvir e, finalmente, fazer a sua análise.
Tudo isto para dizer que eu, notando nele essa pecha, o incitava a ir às frentes de trabalho de modo a enriquecer a sua bagagem e conhecimentos. Foi por isso que um dia o convidei a acompanhar-me.
            — Ó engenheiro Marteleira, amanhã, pelas 10 horas, vou levá-lo a dar uma volta à obra. – convidei.

            — Ó sr. Caria, amanhã não sei se posso! Sabe… tenho umas coisas para fazer…

            — Ah tem? E você pensa que, nesta obra, haverá alguém que não tenha coisas para fazer? Não podendo ser amanhã, então vamos agora!

            — Agora? Agora não! Não estou mentalmente preparado para isso.

            — Mentalmente? Ah isso agora é assim? Bem, então fica marcado para as dez de amanhã. – marquei eu.

            — Então está bem! – concordou o engº Marteleira.

            E foi por volta da hora combinada que saímos do escritório a caminho da obra. Mas começar por onde? Por que edifício? Naquela fase de obra, achei que o melhor era levá-lo à Torre Dopol. Havia algumas atividades a decorrer naquele edifício que, acreditei, seriam interessantes para ajudar a desemburrar[1] o nosso amigo Marteleira. Só que esses trabalhos a decorrer na Torre Dopol, situavam-se no cimo do edifício, cuja cota altimétrica era de + 82,00m.
            E, comigo à frente da reduzida comitiva (eu e ele), começou-se a pisar os primeiros degraus de madeira que, sem espelhos, poderiam causar alguma impressão a quem olhava para baixo, para o chão, através dos intervalos. Mas essas escadarias exteriores ao edifício, e a este amarradas, com patamares a cada 2,50m (sensivelmente), eram feitas em estrutura tubular, com corrimão e tudo. Mas continuando a subida, chegámos ao segundo patamar, o que, para o aprendiz de engenheiro, já começava a meter alguma impressão. Do modo como se agarrava ao tubo do corrimão, dava para perceber que o Marteleira sofria de vertigens.
Bem, na verdade tenho uma vaga ideia de que, com avanços e paragens, chegámos ao topo do edifício vinte minutos depois, coisa que, numa subida em condições normais, era feita em quatro ou cinco. Mas este intrincado episódio não se esgotou por aqui, porque o nosso homem, deveras incomodado e de tez esbranquiçada, nem teve pachorra para ver os trabalhos. Ele só pedia para descermos. Agora, o pior é que tínhamos que fazer a descida. Como era a descer, e partindo do princípio que para baixo todos os santos ajudam, pensei ser muito mais fácil do que havia sido para cima. Logo na entrada do, antes último e agora primeiro, lanço de escada, o engº Marteleira, rodando sobre o seu eixo no sentido de procurar a melhor posição para atacar a descida, e não lhe achando o jeito, perguntou-me:

— Ouça lá! Você acha que eu devo descer de frente ou de costas?

— Se você descer de costas, o mais certo é ter de galgar os degraus todos de uma vez, até ao chão. Portanto, desça do modo como eu vou fazer. – aconselhei.

Com isto, eu só queria que ele chegasse lá abaixo inteiro. Mas com aquela minha piada, o homem ficou psicologicamente afetado. Tanto assim, que, agarrando-se ao corrimão que nem uma lapa, deu para perceber que o melhor era pedir o almoço lá para cima, porque, pelos vistos, não íamos sair dali tão cedo. Depois, ou ele embarcava no cesto de uma grua, ou tínhamos que recorrer a um helicóptero de aluguer para o tirar dali.
Devagar, devagarinho, comigo à frente, para transmitir ânimo ao meu companheiro de aventura, lá descemos até à base. Já em solo firme, sentindo-se são e salvo, o engº Marteleira, com a voz embargada pela emoção e pelo cansaço, com a tez amarelada que nem limão maduro, ainda arranjou fôlego para me dizer:

— Porra, sr. Caria, nunca mais me apanham na obra!

E, que se saiba, até hoje, nunca mais se viu o Marteleira na obra. Mas eu sabia lá que o homem sofria de vertiginite aguda[2]!...




[1]  Instruir
[2] Possuidor de fortes vertigens
Extrato de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", Volume II

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O Escanção de Lisboa


O Sr. Fernando Branco explicando ao Sá, como provar o tinto

( Onde se fala do Sá e do escanção de Lisboa)
        Por força de eu trabalhar e residir fora de Vale da Pinta, já não via o meu amigo Fernando Sá fazia tempo, mas como ia visitar a terra e aquela malta com uma certa periocidade, foi sem surpresa que, numa tarde de domingo, me encontrei com o Sá. Depois dos habituais cumprimentos, fomos comemorar o encontro à taberna do Valentim do Berto. E comemorar com tinto carrascão, como era da praxe no concelho. Um copo para mim, um copo para o Sá, e eis que este meu amigo, mal acabou de sorver a primeira golaça, teve um tal engasganço que, por pouco não se foi abaixo do fôlego. O rapaz, que até era (e é) sportinguista, ficou vermelho que nem um tomate saloio, tal foi o sufoco. Eu, como se compreende, naquele momento fiquei preocupado, mas nem cinco segundos haviam passado quando, para meu espanto, o meu amigo Fernando desata a rir numa tal galhofada, que dir-se-ia que o gajo estava a delirar e não estaria bom da cabeça. Mas tudo não passou de um pequeno susto. O Sá, perante a minha aflição, tentou, e conseguiu, explicar-me o que lhe ia na mona: o que lhe tinha provocado aquela fugaz paranoia. Antes, porém, para quem não conhece a região e mais os costumes das suas gentes, vou situar a cena. Na região do Cartaxo, era natural que o dono de uma adega, quando de porta aberta, oferecesse um copo de vinho a quem passava. Era, por um lado, a maneira de ser cortês respeitando a tradição e, por outro, um modo de dar a saber a terceiros que fulano tinha uma “rica pinga”.
Neste caso concreto, o Sá estava a fazer uma obra no Cartaxo para o Sr. Fernando Branco e, por via disso, foi por este convidado a deslocar-se ali ao lado, à adega, para saborear a qualidade superior daquele vinho tinto, no dizer do Branco. Este, Sr. Fernando Branco, sendo natural de Vale da Pinta, onde possuía uma bela vivenda que utilizava aquando das suas espaçadas visitas à terra, residia, no entanto, há mais de três décadas em Lisboa, onde exercia a atividade de industrial da construção civil.
Voltando, então, à taberna do Valentim, em Vale da Pinta, e com o amigo Sá de traqueia desimpedida, foi-me, assim, relatado o modo como surgiu o convite e o diálogo estabelecido entre os dois Fernandos: um Sá e outro Branco.

— Ó Fernando, venha ali comigo, à minha adega, provar um vinho tinto da minha lavra, que eu mesmo fiz, para consumo próprio e também para oferecer a alguns engenheiros e arquitetos lá de Lisboa. Eu acho que você até vai ficar banzado com a qualidade daquela “pomada”.

O Sá que, naquela hora, até estava a necessitar de algo escorregadio para lhe lubrificar a garganta, acedeu ao bem-vindo e honroso convite. Seguindo os passos do anfitrião, depressa entrou na adega e estacou, atrás do Branco, em frente ao depósito que continha o tinto.
Comparando com o tempo agreste, pelo calor, que se fazia sentir na obra e na rua, ali dentro estava-se muito bem. Agora, só faltava o resto, que era, nem mais nem menos, do que chegar-lhe à boca o desejado copo de vinho, rotulado pelo dono como uma coisa muito especial.
O Fernando Branco, todo emproado e com um manejar de mãos que mais parecia um ilusionista em pleno exercício, pega no manípulo do espicho, roda-o com requinte, 90˚para a esquerda e, dentro do copo, começou a caír o vinho tinto, escuro como breu e, com uma auréola espumejante que, só de ver, fazia crescer água na boca.
O dono do vinho, com um tal cuidado para que a espuma não transbordasse, rodou o manípulo 90˚ mas, desta vez, no sentido inverso e fechou o espicho sem verter uma gota sequer. Lentamente estendeu a mão com cerimónia e, com o copo preso em anel,  por apenas dois dedos, pô-lo diante do Sá, dizendo:

— Ó Fernando, venha lá daí, aqui ao quintal, para melhor poder observar a cor deste néctar. Prove lá a especialidade!

O Sá, agarrou no copo à balda, de mão cheia, acompanhou o Branco até à claridade exterior e, aí, à boa maneira ribatejana, sem preceito nem técnica, fez pontaria à boca e zás! Num trago, emborcou o conteúdo do copo, garganta abaixo, sem pestanejar. Depois, arrotou duas vezes, respirou fundo, limpou duas lágrimas que o vinho fizera soltar dos olhos, recompôs-se e disse:

— Sim, senhor, que rico vinho tinto que o Sr. Branco aqui tem! Isto é uma autêntica maravilha! Nunca na vida bebi nada que se parecesse com isto!

O Fernando Branco ficou estupefacto. Ele nem queria acreditar no que tinha acabado de ver e ouvir. Conteve-se por instantes e, depois, num tom pouco amistoso, disse com voz grave:

— Eu nem quero acreditar no que estou a presenciar! Então o  Fernando, nem sequer provou o vinho e está a dizer-me que ele é muito bom? Dá para ver que você diz isso só para me fazer jeito!

O Sá, ao ouvir tal comentário da boca do Sr. Fernando Branco, ficou estarrecido, confuso e perturbado. Mas, então, o que é que ele tinha feito de mal, que comportamento menos digno teria tido, para ser tão duramente criticado? O Sr. Branco teve o descaramento de afirmar que ele, Sá, não tinha provado o vinho? E como o Sá até jogou futebol, tinha, com toda a certeza no ouvido, aquele “slogan” em que se enaltece quem ataca: “A melhor defesa é o ataque!” E, com base nesta frase, resolveu, não atacar, mas contra-atacar. E, em sua defesa, disse:

— Então, se eu bebi um copázio deste tamanho, num abrir e fechar de olhos, como é que o Sr. Fernando Branco me vem criticar afirmando que eu nem sequer provei o vinho?

Responde-lhe o Branco, do alto dos seus conhecimentos de enologia:

— É evidente que o senhor não provou o vinho… o senhor tragou-o, o que não é a mesma coisa! Então o Fernando pegou no copo, abriu as glândulas e verteu de uma só vez o seu conteúdo e quer agora fazer-me crer que o provou? O senhor omitiu, pura e simplesmente a apreciação organoléptica do néctar e isso é indesculpável.

Perante o silêncio e o olhar esbugalhado do Sá, o Sr. Fernando Branco, num tom mais calmo, começa a lição deste modo:

— Ó Fernando, ao contrário do modo como o senhor agiu, vou fazer-lhe uma pequena demonstração daquilo que você devia ter feito e não fez. Então é assim: o gesto requer classe e elegância. É preciso segurar o copo com apenas dois dedos, assim, para que o calor da mão não altere a temperatura e as caraterísticas do produto. Depois, verifica-se a cor e a consistência. Em seguida, leva-se o copo ao nariz para sentir o aroma e o buquê. Só depois, então, o copo vai à boca. Sorve-se um pequeno gole, mas antes de engolir faz-se com que o líquido percorra todos os cantos da cavidade bucal, estimulando as glândulas gustativas. Por fim, deglute-se. Assim, sim! Só procedendo deste modo, o Fernando está apto a responder ao desafio de quem lhe propõe uma prova de vinho.

O Fernando Sá, que já nem sabia como dar a volta à situação, encheu-se de brio e disse.

— Sim, senhor, agora é que eu já percebi! A partir de agora, acho que já estou apto a fazer uma boa prova de vinho! O Sr. Branco faça o favor de voltar a encher o copo, porque, desta vez, a coisa vai sair bem!

Desta vez, foi o Sr. Fernando Branco que ficou sem fala: quedo e mudo. Mesmo assim, tentando disfarçar a sua irritação, disse:

— Era o que mais faltava! Agora, depois de ter encharcado as suas glândulas gustativas com uma autêntica enxurrada de vinho, acha que ainda tem alguma sensibilidade no palato para poder apreciar alguma coisa? Valha-o Deus, amigo Fernando! Vá lá ao seu trabalho e, um dia destes, voltaremos cá para que se possa tirar a prova dos nove e do vinho.

É que, apesar de o meu amigo Sá ter saído da adega um tanto sequioso e desconfortável, não tinha perdido nada com a lição. Até porque, doravante, já poderia ensinar a um qualquer fulano da terra, como se devia tirar proveito de um bom vinho, por via de uma boa análise oral e bocal. Sem estragar, claro. Assim ele se viesse a safar na segunda oportunidade que lhe ia ser dada.
O adiamento do evento, para que o meu amigo tivesse uma nova oportunidade, não iria causar neste assim tanta ansiedade, já que, no dia seguinte, o patrão Branco, como homem de palavra que era, teve a hombridade de formular novo convite ao Fernando Sá, a fim de voltar a testar a sua evolução enológica.
Texto extraído de "DEGRAUS E MARCOS DA VIDA", VOLUME II.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Cena XVII - Havia mais Zés Augustos



- Havia mais Marias (José Augusto) na terra (empresa) -

Dois gabinetes depois daquele, num outro em tudo idêntico ao nosso, laborava um outro grupo, chefiado pelo Rogério Feio. Eram todos desenhadores que, tal como eu, tinham vindo de Marrocos. Estavam a desenvolver o projeto da III Linha Fabril da Cimpor, em Souselas.
Se a memória não me falha, eram eles: o José Brincano, o Artur Cosme, o Manuel Pedroso, o António Cartaxo e o Francisco Peres. Naquela ala, os gabinetes de duplos envidraçados, suportados por baias de mogno, de 1 metro de altura, davam para, através deles, vislumbrar todo o enfiamento daquelas salas, cujas vistas para o Tejo e Cristo-Rei, deslumbravam. Foi, portanto, devido ao acesso visual que tinha aos outros gabinetes que, em certa ocasião, me apercebi de uma grande galhofa entre aquela malta mas, como não dava para ouvir, não sabia o que de bom ou mau lá estaria a acontecer. Pelo que se podia ver, alguns riam a bom rir, mas também havia outros que choravam. A curiosidade apossava-se de mim e, para a satisfazer, não tive outro remédio senão deslocar-me até à vizinhança e bisbilhotar o que motivara aquele festival misto de gargalhada e choradeira.
Mal entrei, e pelo que vi, o festival era todo ele de risada, só que alguns dos comparsas, de tanto rir, acabavam a chorar. Então, o que esteve na origem daquilo que ditou aquele imbróglio foi isto:

Havia na empresa um apontador de nome José Augusto. Mas esse facto nada teria de transcendente, já que não era a única pessoa a laborar nas Construções Técnicas com tal nome. Na categoria de capatazes e encarregados, que me lembre, havia dois, e na categoria de engenheiro, para não fugir á regra, também havia um José Augusto: o engº José Augusto dos Santos. Até aqui tudo bem, tudo normal, mas o que antes era um ambiente calmo, tranquilo, com apenas uma piada ou um dichote pelo meio, iria transformar-se num arraial de autêntica galhofada. E tudo nasceu com um simples telefonema.
 
Ao toque do telefone, fez-se silêncio. O Peres foi atender.
            E disseram de lá:
— Está? Daqui fala José Augusto!
E responde o Peres:
Então, ó cabrão, o que é que andas a fazer?
A voz do outro lado do fio alterou-se substancialmente. E, com um misto de curiosidade e indignação, perguntou:
Mas quem é que está ao telefone?
Então tu não me conheces, ó sacana? Ainda por cima, estás a disfarçar a voz! – comentou o Peres.
O outro ainda chegou a pensar tratar-se de algum cruzamento de linhas, o que na altura era vulgar. E, meio na dúvida, voltou a insistir:
Bem, há aqui qualquer confusão. Mas quem fala daí?
Ó cabrão, tu não vês que é o Peres? – disse o Peres.
Ai é o Peres? Pois daqui fala o engº José Augusto dos Santos! Quero falar com o sr. Rogério Feio e, depois, vou aí, pessoalmente, falar consigo.

O engº José Augusto dos Santos era um dos administradores (5%) das Construções Técnicas e, na altura, teria uns sessenta anos de idade e muitos anos de empresa.
Depois, era a vez do Peres aguardar, nervoso q.b. e em silêncio, pela chegada deste outro José Augusto, que estaria por aí a aparecer. E, como se compreende, ele traria na manga um valente raspanete para doar ao bronco do Francisco Peres, amigo do outro Zé Augusto, que não era engenheiro nem Santos, mas apontador e Carneiro. José Augusto Carneiro, de seu nome completo.
Realmente, as amizades entre colaboradores das Construções Técnicas eram tão fortes, que até sugeriam tratamentos de choque, como, por exemplo, este aplicado pelo Peres ao suposto amigo José Augusto.
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Texto extraído do livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA"

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Cena XV - Marrocos - Se não de R4, ao menos de Burro


- Quem não conduz R4, monta burro -

O BURRITO que, outrora, fora do Lima

 





Tal como este mundo - que é composto por diversos tipos de seres, raças, credos, tendências e espécies da mais variada espécie – também esta zona oriental de Marrocos, onde se situava a obra, era habitada por humanos, desumanos, carneiros, cães, gatos vadios e, até - pasme-se – burros vadios. Quero com isto dizer que, neste desfile de excêntricos, também poderão figurar burricadas de asininos e mais quem os venera, monta ou conduz.
Realmente, no dia a dia, era frequente vermos por ali, à deriva, algumas dezenas de burros, a pastar pedra e terra, porque herbáceas verdes ou secas, era coisa que, por aquelas bandas, desde Naíma a El Aioun, não havia. Aquele arraial de burros perdidos, sem donos, a vaguear por aqueles terrenos, podia comparar-se ao que se passa em certas aldeias do nosso país, com cães e gatos vadios. A grande diferença era a altura dos burritos, cujos dorsos não teriam mais do que um metro e dez. Muito mais baixos do que os que estávamos habituados a ver por essas aldeolas portuguesas.

À parte dos burros, era suposto que as Construções Técnicas fornecessem a certas categorias de colaboradores, especialmente aos chefes de serviço, um meio de transporte individual, o qual tanto seria utilizado ao serviço direto da obra, da empresa, em si, como até no uso particular, caso concreto dos fins de semana.
Eu próprio tive de andar à boleia do Santiago Silva durante quase um mês, que foi o tempo de espera por uma Renault R4, que tardava em fazer o trajeto entre Casablanca e Oujda. Nesse período, na obra, ou andava a pé ou, então, por simpatia do Santiago, era de carrinha, por empréstimo da sua R4.
Mas eu era eu; o Lima Remédios era o Lima Remédios. E foi dentro desta diferenciação que se fez história nesta obra, por obra e graça do técnico do Laboratório de Betões.
O colega Lima Remédios era um tipo novo. Eu tinha trinta e dois anos, mas julgo que ele era mais novo: talvez tivesse uns vinte e cinco. Era alto, sóbrio, altivo, vestia bem e, talvez, demasiado presunçoso. Como disse, era técnico do Laboratório de Betões e, por isso, subordinado do engº Morgado, este sim, chefe daquela unidade de ensaios de betões e solos. Mas o Remédios, lá no seu conceito, achava que também tinha direito a uma Renault R4, que eram os carros da frota-tipo adquiridos para a obra. Ele fazia os seus périplos diários entre as diversas centrais de betão da obra, Laboratório e Escritório Principal. A obra era bastante extensa e o nosso amigo era capaz de ter de palmilhar à volta de dez quilómetros por dia. Se ele tivesse espírito de missão ou espírito de atleta, tudo o resto era secundário, e tudo o que fazia lhe daria prazer mas, como parece, esses não eram bem os predicados do Remédios.
O fulano, numa primeira fase, começou por pedinchar uma carrinha igual às dos outros, o que não teve eco na direção de obra. Depois, na fase seguinte, exigiu que lhe dessem uma carrinha R4, tal como tinham dado a outros, que não andariam, a pé, mais que um décimo das distâncias que ele percorria dentro da obra. Mas a resposta voltou a ser negativa, o que o deixou extremamente revoltado.
Mas o Lima Remédios, devido ao seu caráter, não era pessoa de se deixar ficar. Ele era um duro e, dentro dessa filosofia, jurou vingança. Disso deu conhecimento ao seu chefe direto, mas também aos colegas mais íntimos, pese embora não revelando nunca a forma como é que essa vingança iria ser posta em prática. Era esperar para ver o que o técnico tinha na manga, que, sob o seu ponto de vista, desse resposta à afronta da qual estava a ser vítima.
Tendo chegado à conclusão de que não adiantava voltar a esmolar a tão - antes – desejada carrinha, foi ao Armazém, requisitou uma corda de sisal com dois metros e dois cerra-cabos, pensando ter resolvido a primeira parte do seu plano secreto. A segunda fase foi a compra de um jerico a um servente seu, que se dizia dono de um daqueles burros que por ali vagueavam. O rapaz pegou na corda de sisal, laçou o burro e levou-o à presença do Lima, tendo cobrado cinco dirhams pela suposta venda.
No dia seguinte, pela manhã, para surpresa e gáudio do pessoal da obra – e não só - era ver o Lima Remédios de chapéu de palha de aba larga, tipo mexicano, jilaba castanha riscada, com o cone de Abrams, varão e chapa da base às costas, montado num daqueles burros selvagens que andavam por ali à deriva, e que ele tinha conseguido domar e domesticar à última hora. De tão comprido sobre burro tão curto, fazia algum esforço para evitar as sucessivas raspagens que as biqueiras das botas faziam no chão, mas, mesmo assim, sempre ia mais cómodo do que andar por ali a budos. Ele saltava de central em central, fazendo o seu trabalho com a mesma dedicação de outrora, porque sentia um certo brio profissional e fazia questão de o demonstrar, mas, lá no seu íntimo, nunca mais perdoaria às chefias aquilo que considerava uma atroz descriminação.
Segundo o seu ponto de vista, a vingança terá sido terrível. O Lima Remédios achou que, no que concerne ao modo e à forma como tinha retaliado, a esta hora as entidades que lhe haviam sonegado a viatura, estariam a sentir graves problemas de consciência.
Dentro de uma certa linha filosófica, poderíamos dizer que a frase aplicável a esta ação do Remédios seria mesmo aquela que diz: “Para grandes males, grande(s) Remédios”.

Este técnico, que ainda burricou durante mais duas semanas pela obra, fazendo o seu trabalho de slumps e cubos, já apresentara a sua demissão. Depois rumou a Portugal, não sem antes ter devolvido o jerico ao seu ajudante de campo, que, abusivamente, se dizia dono do animal. Os cinco dirhams, já espatifados, em Coca-Cola e amendoins, pelo rapazola, não retornaram à bolsa do Lima Remédios, tal como seria de prever. Julgo que foram considerados como paga do aluguer do animal.

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Extrato do livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", VOL. II


domingo, 13 de outubro de 2013

Cena XIV - MARROCOS - No Reino do Carlos Silva

- Uma burra consorte, mas sem sorte -

Quem não esteve nesta obra da Cimenteira de Oujda, em Marrocos, não fará a mais pequena ideia das boas condições que os alojados tinham no aldeamento. Eram grupos de blocos separados, construídos em alvenaria, rebocadas e pintadas de branco, com instalações sanitárias anexas e condignas, onde se descansava razoavelmente bem.

Havia duas tipologias: quartos duplos e individuais, conforme o segmento e estrato profissional. Mas, pelo que vi, em qualquer deles, as condições eram boas. Num compartimento duplo, uma pessoa terá, ou não, de se sujeitar à maneira de ser ou estar do parceiro, mas no caso do tipo simples, cada utente fará o que lhe der na real gana. Tanto na escolha, como na disposição dos quadros, posters ou calendários nas paredes, ou ainda os tapetes, carpetes ou peles, dispostos pelo chão, só ao locatário diz respeito.

Sabemos que, entre tanta gente, há de uns e de outros: há quem se esmere com a apresentação da cama no que concerne à dobra de uma manta ou do lençol, e há outros que, para eles, tanto se lhes dá, como se lhes deu. Prova disso, e disse quem sabia, que o Carlos Silva, técnico assistente de gruas, colocava tal minúcia na arrumação e exposição das coisas, que, desde a cama, ao armário, malas, bibelôs e tapete, tudo estava milimetricamente disposto. Ele era um metódico, o que lhe conferia um porte algo cerimonioso. Isso causava uma certa inveja a algumas pessoas mais perversas. E como lia muito, especialmente livros, e usava barba, crescida, esses maldizentes alcunhavam-no de pseudo-intelectual.

O Carlos Silva, tal como muitos outros, gostava de passar um bocadinho do serão no Bar. Ora a ler, ora a jogar bilhar, desde que os parceiros fossem indivíduos de uma certa linhagem, ele alinhava. E foi depois de ter lido, jogado e convivido, que saiu do Bar e caminhou para o seu aprazível quarto, onde o esperava uma cama fofinha e um tapete de lã de carneiro, tão suave que, ao pisá-lo, imaginava estar sobre nuvens.

O Carlos meteu a chave à porta e, mal esta se abriu, o que viu nem dava para acreditar. Ele ficou estático, quedo e mudo com o espetáculo (triste) que se apresentava diante dos seus olhos. Em pose artística (?), olhando na direção da porta, pisando o já amarfanhado tapete e exibindo um letreiro na testa, esperava-o uma linda e altiva burra, que o mirava de alto a baixo.

Essa mensagem de amor, escrita sobre cartolina branca, com tinta preta, dizia:

ENTRA, QUERIDO!


Alguém, malfazejo ou libertino quanto baste, terá escrito aquela provocatória frase, pondo na testa da burra o que a sua boca não dissera: à revelia, portanto.

Agora, para retirar o animal do quarto é que foram elas: o Carlos Silva bem chamava, acenando-lhe no sentido da saída, mas ela é que não arrancava dali. Confortavelmente instalada, com as patas em cima do tapete de lã, estava agora a burra para sair do quarto e expor-se ao ar frio da noite, com as patas no chão frio. Com isso, o animal até podia apanhar um resfriamento. Bem, mas a cena não podia durar toda a noite. E o Carlos não teve outro remédio senão retornar ao Bar e trazer consigo três maduros que, ainda assim, tiveram imensa dificuldade em convencer a burra a sair dos aposentos, onde ela se sentia tão bem. Tivesse ocorrido ao Carlos Silva a lembrança de se deslocar ao refeitório em demanda de um molho de cenouras, e o problema tinha acabado tão depressa como começara.

Agora, era dar um jeito à cama e limpar os bonicos[1] de cima da pele de cordeiro, porque o pedido de demissão, a apresentar ao engº Farinha, ficava para a manhã do dia seguinte.

Como rescaldo da saga, o pedido não foi aceite, mas o autor da gracinha foi descoberto. E quem mais havia de ser, se não o chanfrado do Nogueira, manobrador de gruas e da bomba Schwing!?

Mas o que importa é que o Carlos Silva ficou. Depois, era só arranjar um pouco de estofo e poder de encaixe para aparar as piadas dos gozões.
Carlos, onde quer que estejas, aceita, em meu nome, um abraço do Grupo C.T. 


Texto extraído do livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA" Vol. II



[1] Excrementos de animal asinino e não só

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Cena XIII- No Algarve, O Baile Mandado do Alex

Estávamos no verão de 1971.
Na altura, construíamos a Marina de Vilamoura.
 A pequena Quarteira daqueles tempos, nada tinha a ver com a cidade que hoje se conhece. Todavia, embora fosse pouco mais que uma pequena vila piscatória, já tinha uma grande afluência de turistas, em especial ingleses. Tinha uns três ou quatro hotéis bem credenciados, a par de alguns bares onde, à noite, se podia ir beber um copo com os amigos, ou as amigas. Por isso, não se estranhava que a administração do complexo turístico “AlgarveSol”, situado mesmo à entrada da, então, vila, organizasse, de vez em quando, uns shows, não apenas para os seus "costumeiros" clientes como para outras pessoas de fino porte.
Naquela noite, o anunciado espetáculo prometia. Era nem mais nem menos do que o Alex. Sim, o ultra conhecido Alex e o seu conjunto. O artista, natural de Portimão, tinha um grande cartel no Algarve, mas não só, porque o grupo acabava de chegar de uma longa tournée em França. Além disso, também fizera uma digressão por Angola, atuando em várias cidades e tendo proporcionado alguns espetáculos aos soldados portugueses, ali em missão.
Os convites foram feitos e os convidados apareceram. De entre eles, estavam os meus chefes, os nossos dois conhecidos engenheiros, Brás Menezes e Analídio Dimas. Contudo, o ser-se convidado não bastava: era preciso entrar rapidamente no seio, salvo seja, daquelas beldades que por ali deambulavam, quem sabe se à procura do mesmo, só que de sinal contrário. Muitas delas, mesmo sabendo que o Alex era um inveterado mariconço, não o largavam da mão. As tipas, meio histéricas, rodeavam o artista e este, que não estava a gostar dos apertos, tentava dispersá-las para longe, porém sem êxito. Famoso é famoso. Tem que possuir estofo para lidar com estas situações, senão mais vale ir trabalhar para as obras, como servente. Ao menos, assim, não há miúda que lhe olhe para a tromba, quanto mais apertá-lo.
Mas agora era tempo de deixar de contemplar, embevecidos, aquele magote de mulheraças e agir. Mudar de tática, era o que se impunha numa ocasião como aquela. Tirar partido do convívio do grupo de fêmeas, através da aproximação ao Alex. Para isso, foram-se aproximando, com pés de lã. Chegados, não foi fácil chegar à fala com o astro, já que o mulherio, embora de modo suave, tentava barrar o acesso ao músico. Mas valeu o esforço. Eles, por fim, lá conseguiram. Como era de ver, os dois amigos estavam-se marimbando para o Alex; o que eles queriam era partilhar convívio com as garotas, mas o experimentado BM também sabia que aquele tipo de indivíduos arrasta consigo muita mulherada, por tal motivo, melhor seria fazer do Alex trampolim e, em seguida, pular para o sexo oposto. Então, falando para o Alex, mas olhando para as miúdas, começaram por se apresentar: quem eram, de onde vinham, onde estavam instalados, etc. Daí para a frente, não importa entrar em pormenores, mas apenas realçar o à-vontade, a facilidade com que eles se movimentavam no meio, e os relacionamentos que conseguiram estabelecer com a imensa plateia feminina, está bom de ver. Estava armado o esquema e a noite ia ser deles.
A certa altura, as músicas tocadas deixaram de ser do tipo rockeiras e twisteiras. Depois de uma fugaz passagem com duas músicas em ritmo algo remexido, de raiz africana, como aquela música do Duo Ouro Negro, a “Elisa Aué, Gomaré Saia”, o Alex terá recomendado aos restantes componentes do conjunto para que entrassem em ritmos mais suaves, mais tipo slow e rumba, pelo que, sendo aqueles somente musicados e não cantados, deram ao vocalista Alex vontade de pular do palco e a chance de, também ele, rodopiar nuns bons passos de dança. O que antes fora baile desgarrado e à vara larga, dera agora lugar ao direito e dever de cada qual se agarrar ao par que conseguisse aliciar. E, para espanto da malta, eis que o Alex avança na direção do BM. Mesmo sem o trivial convite, agarrou-se ao jovem engenheiro, como quem entrelaça uma dama, mais parecendo que aquilo era o da Joana. Ora o engº BM, cuja linhagem tinha sido patenteada para emparceirar com o sexo oposto, não gostou muito da cena e, ao mesmo tempo que tentava libertar-se das garras do atrevidote cantor, que já o enlaçava pela cintura e dera início aos primeiros passos de dança, ouviu deste, este jeito de desabafo:
― Ah preto, preto! – guinchou o Alex.
Esta agora foi a melhor! Preto? O BM teria traços de alguma ascendência indiana, mas daí até ser preto, ia uma colossal diferença. Em boa verdade, o Brás Menezes, com aquela tez amorenada e envergando um esbelto fato branco, originava um tal contraste que, comparando as duas cores, o seu rosto seria bem mais preto que branco... Mas, seja como for, ou fosse como fosse, o certo é que o engº Brás Menezes tinha caído no goto do artista do momento: o cantor Alex. Este, sentindo uma grande fobia pelo sexo oposto, preferia um par masculino. E, ali por aquelas bandas, parece que mais másculo que o BM não era fácil encontrar, daí a escolha do cantor e músico. O tipo tinha grande olho.
Bem, mas a verdade é que, depois de ter passado pelo sacrifício daqueles demorados e intermináveis rodopios nos braços do Alex, o cartel do BM junto das vamps subiu vertiginosamente. Até o sagaz alentejano de Odemira, Analídio Dimas, tirou partido da onda criada pelo seu chefe, agarrando-se, indiscriminadamente, a tudo o que por ali usasse saias. Feias ou bonitas, tanto lhe fazia. Ele, lá nisso, não era esquisito.
Foi o corolário de uma grande noite de borga e folia. Mas folia fina, já que não era qualquer mastronça que entrava naqueles saraus, daquelas noites de verão do "AlgarveSol". Era tudo gente selecionada, de primeira água. Nem os meus chefes se exporiam a outro qualquer cenário, que não fosse de etiqueta.


Extraído de: "DEGRAUS do 2º LANÇO".

sábado, 7 de setembro de 2013

JOSÉ CEITIL - de meu Recruta, a Comissário TAP e... Escritor



(Um jato T33, da BA2)






 
 Soube-o hoje, porque não morri ontem...
 Ando cá eu, andamos cá nós por tantos e infindáveis lugares e, caso não se vá desta para outra assim tão cedo,  chega-se à conclusão, por isto e mais aquilo, de que nunca chegamos a dominar completamente a cena. Muito se trabalhou (muitos), muito se estudou (poucos) e já alguma coisa se viveu (alguns), mas quando estamos prestes a entrar na reta final, vamos tendo a real noção de que "quanto mais viver, mais aprender". Se, por exemplo, eu me tivesse finado ontem, não tinha sabido nunca das vivências e predicados de alguém que, de repente,  para mim, deixou de ser simplesmente um meu ex-recruta, como bem escrevi no meu VOLUME II, para se tornar numa figura pública que, segundo soube hoje, através de entrevista na RTP2. Foi, precisamente, o que aconteceu com o rapaz de Vila Franca de Xira, José Ceitil de seu nome, que, depois de concluída a sua atividade profissional, como assistente de bordo da TAP, se dedicou à ingrata mas gratificante tarefa da escrita.
Não sou de preconceitos ou manias, mas não tenho por hábito ligar o televisor da cozinha na hora do almoço. É refeição, é refeição. Basta já as "secas" e arrelias que se sofre por ver/ouvir tanta desgraça naqueles malditos canais televisivos durante os tempos extra comezaina, quanto mais estar a expor-me aos perigos de engolir algum osso ou espinha, contrair um monte de náuseas ou, talvez ainda pior, sujeitar-me a sofrer uma valente indigestão. É que a impaciência para ouvir tanto charlatão e as suas abomináveis "charlatices" é tanta, que, parte das vezes, só me apetece atirar com a peça mais letal, que estiver mais à mão, à "tromba" daquele inocente televisor, que não tem culpa que, algumas mentes depravadas, o tenham inundado de imundices. Hoje, porém, mal tinha acabado de me sentar, e, nem por que sim nem por que não, deu-me na veneta de clicar o ON. Estava auto sintonizado na RTP2. Aqui decorria o programa "Mar de Letras", com o jornalista Mário Carneiro, que conduzia uma entrevista com o José Ceitil.
Como seria de esperar, não conheci logo o entrevistado. Para mim, era qualquer fulano, um rapaz p'raí da minha idade, que fora convidado para conceder aquela entrevista, que falava de escritores, livros e livreiros, ao canal 2 da RTP. É que, pese embora o aspeto capilar ser tão raso como o que conheci em 1965, eles apresentavam a sua (grande) diferença: é que o antigo era rés, mas abundante, ao passo que o atual era raso e raro. Mas, como falavam de literatura, estórias e histórias e edição de livros, comecei a prestar mais atenção ao tema. Foi quando ouvi, da boca do jornalista, e vi escrito na capa de um dos livros, o nome José Ceitil, que tive um lampejo de retrospetiva memorial, que me transportou para mui recuados tempos. Remeteram-me para a Base Aérea nº 2, da Ota, e para uma recruta que dei a um dos pelotões da 1ª Esquadrilha, onde, entre umas quatro dezenas de maçaricos, figurava o soldado-aluno (mais tarde Especialista), Zé Ceitil. Ele, com 18 anos, já jogava na 1ª categoria da U. D. Vilafranquense. Contudo, nem só de Ceitil se faz esta estória de tropa, já que o cartaxeiro Avelar Marques também me fora confiado como discípulo. A este, tive eu que ajudar, alombando, por muitas vezes, com a sua espingarda, quando a certa altura de um qualquer cross, o Avelar já nem podia com as botas, quanto mais com a espingarda...
Daquela recruta, se bem que em pelotões diferentes, também fizeram parte mais alguns rapazes do concelho do Cartaxo. Dos que me lembro, eram: o Domingos Jarego; O Carlos Marecos; o Veríssimo; o Ludgero; o Acácio, da Lapa; o Chico "Maluco", de Pontével, e o César, que, sendo de Lisboa, tinha raízes em Vale da Pinta.
Retornando aos livros, fiquei agora a saber que o Zé Ceitil já tem três ou quatro livros publicados, o que muito me apraz.
Parabéns, Zé Ceitil! E, o que mais te posso desejar, é que continues nessa senda.
Um abraço.

a) José Caria Luís

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Cena XII - Lisnave, 1969 - O Santos e o Turza



- Dois dos excêntricos –

Esta obra, da Doca Seca nº 10, nos Estaleiros Navais da Lisnave, na Margueira, teve como topógrafo, na sua fase inicial, o Bento Paulino, porém, devido à sua saída para a obra do Hangar 6 da TAP, no Aeroporto de Lisboa, entrou, em sua substituição, o Turza Ferreira. Este nem era mau diabo, mas quando lhe falavam de certas pessoas de quem ele não gostava , ia aos arames. Em certas ocasiões, tinha tais ataques de fúria que dir-se-ia que o homem corria sérios riscos de se passar deste para o outro mundo. E não era preciso grande provocação para o afinar; para isso, bastava, por exemplo, e a propósito de nada, falarem-lhe no nome do Miguel Temudo ou no do engº Cabrita. A sua tez ruborizava de tal jeito, que mais parecia que as bochechas poderiam rebentar a qualquer momento.

Eu conhecia-o da obra do Carregado, mas mal. Nunca tive qualquer ligação de serviço com ele, nem fazia a mínima ideia de quais eram as taras do tipo, mas agora, na Lisnave, com alguns meses de obra pela frente, é que eu iria saber quem era, afinal, o Turza Ferreira. E num dia de bastante sossego, em que o encarregado Silva não foi para o nosso escritório fazer sala ou discutir com o fiscal, tivemos a agradável visita do já conhecido controlador Feliciano Santos que, agora, trabalhava na nossa obra da Siderurgia Nacional, no Seixal. Não me lembro a que propósito ele terá ido à Margueira, mas, para o caso, isso também não é relevante.

Cumprimentos para cá, salamaleques para lá, e eis que entra na sala, vindo da obra, o nosso amigo Turza. Com a chegada do topógrafo, continuaram os abraços, mas desta vez com, apenas, dois protagonistas: o Santos e o Turza. O Feliciano Santos, sabendo dos fracos do colega, tratou de engendrar um esquema que visasse pô-lo em polvorosa. No entanto, para que a conversa parecesse séria e não desse aso a que o Turza desconfiasse da tramoia, o Santos falou comigo de modo a que o outro se sentisse à margem da conversa. E disse, mais ou menos isto:

— Ó Zé Luís, o Temudo está a organizar uma espécie de biblioteca de controlo de operações e precisa que você lhe arranje os dados desta obra: os que considere mais importantes.

 E, como se não bastasse, de modo a provocar o Turza, acrescentou:

— Aquele tipo, o Miguel Temudo, é um profissional com uma capacidade extraordinária. O gajo tem ideias fabulosas! – reforçou o Santos.

O Turza, que permaneceu algum tempo sentado ao estirador, ao ouvir os elogios e a franca apologia do seu inimigo figadal, deu dois saltos, empertigou-se, ficou vermelho e reagiu, assim:

— O quê? O que é que você está para aí a dizer? O Temudo é um génio? Esse gajo é a maior nódoa que alguma vez entrou nas Construções Técnicas! Um sabujo de um lambe-botas, é o que ele é!

O Santos, com a cena controlada, ainda iria espicaçar mais um pouco. E prosseguindo na senda de elogios ao seu chefe, frisou:

— Ó Turza, eu não sei que razões terá você para sentir tal animosidade contra o Temudo. Para mais, sendo eu amigo dos dois, custa-me vê-los assim, de costas voltadas, a digladiarem-se como ferozes inimigos. Vai ver que, um destes dias, ainda vos reúno aí numa almoçarada e obrigo-os a fazer as pazes.

Aqui é que o Santos estragou tudo, conforme pretendia. O seu amigo, ao ouvir tais barbaridades, dava pulos que nem macaco. O homem espumava pelos cantos da boca e, ao mesmo tempo que cerrava os punhos, respondia ao Santos, nestes termos:

— Pazes com esse gajo? Eu quero é vê-lo morto! Você ainda tem lata para gabar esse estafermo? Um génio? Ele, antes de vir para as Construções Técnicas, era empregado dos CTT, em Santarém. Sabe qual era a sua função? Era a de estar sentado à boca de um guiché, com a língua de fora, onde os clientes molhavam os selos que, depois, colavam nos envelopes.

O Feliciano Santos, longe de estar satisfeito com a cena, ainda atirou com mais esta, que sabia ir ferir, ainda mais, o seu interlocutor:

 — Mas olhe que o engº Cabrita gosta muito do Temudo!

Pior foi a reação do Turza Ferreira, que atirou:

 — O engº Cabrita? Esse é mesmo o chefe da pandilha! Não há nesta empresa, engraxador que não esteja debaixo das asas do engº Cabrita. – e sem se deter:

— Esses gajos formam uma roda, e só lá entram os bajuladores com provas dadas. Alguns bem tentam, como você! – insistiu o Turza.

— Eu? - questionou o Santos.

— Sim, você! Quem defende e elogia esses dois trastes, só pode estar aos repelões e a puxar saco, no sentido de arranjar um qualquer buraco que lhe dê entrada nessa sinistra roda.

E finaliza o Santos, com cinismo:

 — Eu não esperava que você me tivesse nessa conta!

 — Ah não? Se eles são os seus modelos, os seus favoritos, então você é tão bom como eles.

O Feliciano já tinha chegado onde queria, mas eu e o Sequeira, que não estávamos a par daquelas rábulas, disputas e rivalidades, ainda nos divertimos, se bem que de modo comedido, não fosse o homem desconfiar que havia por ali complô.

O Turza Ferreira, depois de tanto pular, espumar e, por duas vezes, ter atirado com o capacete ao chão, bateu com a porta e rumou à obra. Julgo eu que o terá feito com o fito de apanhar um pouco de ar fresco, já que, com aquela irritação, não teria condições para operar, com fiabilidade, uma simples fita métrica, quanto mais um taqueómetro...

Entretanto, o Santos, depois de semear aquela onda de mal-estar em casa dos outros, "desalvorava", de fininho, para a Siderurgia, sendo que eu e o Sequeira é que ficávamos com o ónus de ter que aturar a ira do Turza durante o resto do dia.
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Extrato de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", VOL.II