O Sr. Fernando Branco explicando ao Sá, como provar o tinto
( Onde se fala do Sá e do escanção de
Lisboa)
Por força de eu trabalhar e residir fora de Vale da Pinta, já não via o meu amigo Fernando Sá fazia tempo, mas como ia visitar a terra e aquela malta com uma certa periocidade, foi sem surpresa que, numa tarde de domingo, me encontrei com o Sá. Depois dos habituais cumprimentos, fomos comemorar o encontro à taberna do Valentim do Berto. E comemorar com tinto carrascão, como era da praxe no concelho. Um copo para mim, um copo para o Sá, e eis que este meu amigo, mal acabou de sorver a primeira golaça, teve um tal engasganço que, por pouco não se foi abaixo do fôlego. O rapaz, que até era (e é) sportinguista, ficou vermelho que nem um tomate saloio, tal foi o sufoco. Eu, como se compreende, naquele momento fiquei preocupado, mas nem cinco segundos haviam passado quando, para meu espanto, o meu amigo Fernando desata a rir numa tal galhofada, que dir-se-ia que o gajo estava a delirar e não estaria bom da cabeça. Mas tudo não passou de um pequeno susto. O Sá, perante a minha aflição, tentou, e conseguiu, explicar-me o que lhe ia na mona: o que lhe tinha provocado aquela fugaz paranoia. Antes, porém, para quem não conhece a região e mais os costumes das suas gentes, vou situar a cena. Na região do Cartaxo, era natural que
o dono de uma adega, quando de porta aberta, oferecesse um copo de vinho a quem passava. Era, por um
lado, a maneira de ser cortês respeitando a tradição e, por outro, um modo de
dar a saber a terceiros que fulano tinha uma “rica pinga”.
Neste caso concreto, o Sá estava a fazer uma
obra no Cartaxo para o Sr. Fernando Branco e, por via disso, foi por este
convidado a deslocar-se ali ao lado, à adega, para saborear a qualidade
superior daquele vinho tinto, no dizer do Branco. Este, Sr. Fernando Branco, sendo
natural de Vale da Pinta, onde possuía uma bela vivenda que utilizava aquando
das suas espaçadas visitas à terra, residia, no entanto, há mais de três
décadas em Lisboa, onde exercia a atividade de industrial da construção civil.
Voltando, então, à taberna do Valentim, em Vale da Pinta, e com o amigo Sá de traqueia desimpedida, foi-me, assim, relatado o modo como surgiu o convite e o diálogo estabelecido entre os dois Fernandos: um Sá e outro Branco.
— Ó Fernando, venha ali comigo, à
minha adega, provar um vinho tinto da minha lavra, que eu mesmo fiz, para
consumo próprio e também para oferecer a alguns engenheiros e arquitetos lá de
Lisboa. Eu acho que você até vai ficar banzado com a qualidade daquela
“pomada”.
O Sá que, naquela hora, até estava a
necessitar de algo escorregadio para lhe lubrificar a garganta, acedeu ao
bem-vindo e honroso convite. Seguindo os passos do anfitrião, depressa entrou
na adega e estacou, atrás do Branco, em frente ao depósito que continha o
tinto.
Comparando com o tempo agreste, pelo calor, que se
fazia sentir na obra e na rua, ali dentro estava-se muito bem. Agora, só
faltava o resto, que era, nem mais nem menos, do que chegar-lhe à boca o desejado
copo de vinho, rotulado pelo dono como uma coisa muito especial.
O Fernando Branco, todo emproado e
com um manejar de mãos que mais parecia um ilusionista em pleno exercício, pega
no manípulo do espicho, roda-o com requinte, 90˚para a esquerda e, dentro do
copo, começou a caír o vinho tinto, escuro como breu e, com uma auréola
espumejante que, só de ver, fazia crescer água na boca.
O dono do vinho, com um tal cuidado
para que a espuma não transbordasse, rodou o manípulo 90˚ mas, desta vez, no
sentido inverso e fechou o espicho sem verter uma gota sequer. Lentamente
estendeu a mão com cerimónia e, com o copo preso em anel, por apenas dois dedos, pô-lo diante do Sá,
dizendo:
— Ó Fernando, venha lá daí, aqui ao quintal, para melhor poder observar a cor deste néctar. Prove lá a
especialidade!
O Sá, agarrou no copo à balda, de mão cheia, acompanhou o Branco até à claridade exterior e, aí, à boa maneira ribatejana, sem
preceito nem técnica, fez pontaria à boca e zás!
Num trago, emborcou o conteúdo do copo, garganta abaixo, sem pestanejar. Depois, arrotou duas vezes, respirou fundo, limpou duas lágrimas que o vinho fizera soltar dos
olhos, recompôs-se e disse:
— Sim, senhor, que rico vinho tinto
que o Sr. Branco aqui tem! Isto é uma autêntica maravilha! Nunca na vida bebi
nada que se parecesse com isto!
O Fernando Branco ficou estupefacto.
Ele nem queria acreditar no que tinha acabado de ver e ouvir. Conteve-se por instantes
e, depois, num tom pouco amistoso, disse com voz grave:
— Eu nem quero acreditar no que estou
a presenciar! Então o Fernando, nem
sequer provou o vinho e está a dizer-me que ele é muito bom? Dá para ver que você diz isso só para me
fazer jeito!
O Sá, ao ouvir tal comentário da boca
do Sr. Fernando Branco, ficou estarrecido, confuso e perturbado. Mas, então, o
que é que ele tinha feito de mal, que comportamento menos digno teria tido,
para ser tão duramente criticado? O Sr. Branco teve o descaramento de afirmar
que ele, Sá, não tinha provado o vinho? E como o Sá até jogou futebol, tinha,
com toda a certeza no ouvido, aquele “slogan” em que se enaltece quem ataca:
“A melhor defesa é o ataque!” E, com base nesta frase, resolveu, não atacar,
mas contra-atacar. E, em sua defesa, disse:
— Então, se eu bebi um copázio deste
tamanho, num abrir e fechar de olhos, como é que o Sr. Fernando Branco me vem
criticar afirmando que eu nem sequer provei o vinho?
Responde-lhe o Branco, do alto dos
seus conhecimentos de enologia:
— É evidente que o senhor não provou
o vinho… o senhor tragou-o, o que não é a mesma coisa! Então o Fernando pegou
no copo, abriu as glândulas e verteu de uma só vez o seu conteúdo e quer agora
fazer-me crer que o provou? O senhor omitiu, pura e simplesmente a apreciação
organoléptica do néctar e isso é indesculpável.
Perante o silêncio e o olhar
esbugalhado do Sá, o Sr. Fernando Branco, num tom mais calmo, começa a lição
deste modo:
— Ó Fernando, ao contrário do modo
como o senhor agiu, vou fazer-lhe uma pequena demonstração daquilo que você
devia ter feito e não fez. Então é assim: o gesto requer classe e elegância. É
preciso segurar o copo com apenas dois dedos, assim, para que o calor da mão
não altere a temperatura e as caraterísticas do produto. Depois, verifica-se a
cor e a consistência. Em seguida, leva-se o copo ao nariz para sentir o aroma
e o buquê. Só depois, então, o copo vai à boca. Sorve-se um pequeno gole, mas
antes de engolir faz-se com que o líquido percorra todos os cantos da cavidade
bucal, estimulando as glândulas gustativas. Por fim, deglute-se. Assim, sim! Só
procedendo deste modo, o Fernando está apto a responder ao desafio de quem lhe
propõe uma prova de vinho.
O Fernando Sá, que já nem sabia como
dar a volta à situação, encheu-se de brio e disse.
— Sim, senhor, agora é que eu já
percebi! A partir de agora, acho que já estou apto a fazer uma boa prova de
vinho! O Sr. Branco faça o favor de voltar a encher o copo, porque, desta vez,
a coisa vai sair bem!
Desta vez, foi o Sr. Fernando Branco
que ficou sem fala: quedo e mudo. Mesmo assim, tentando disfarçar a sua irritação, disse:
— Era o que mais faltava! Agora,
depois de ter encharcado as suas glândulas gustativas com uma autêntica
enxurrada de vinho, acha que ainda tem alguma sensibilidade no palato para
poder apreciar alguma coisa? Valha-o Deus, amigo Fernando! Vá lá ao seu
trabalho e, um dia destes, voltaremos cá para que se possa tirar a prova dos nove e do
vinho.
É que, apesar de o meu amigo Sá ter saído
da adega um tanto sequioso e desconfortável, não tinha perdido nada com a
lição. Até porque, doravante, já poderia ensinar a um qualquer fulano da
terra, como se devia tirar proveito de um bom vinho, por via de uma boa análise oral e bocal. Sem estragar, claro. Assim ele se viesse a safar na segunda oportunidade que lhe ia ser dada.
O adiamento do evento, para que o meu amigo tivesse uma nova oportunidade, não iria causar neste assim tanta ansiedade, já que, no dia seguinte, o patrão Branco, como homem de palavra que era, teve a hombridade de formular novo convite ao Fernando Sá, a fim de voltar a testar a sua evolução enológica.
Texto extraído de "DEGRAUS E MARCOS DA VIDA", VOLUME II.