segunda-feira, 29 de julho de 2013

- A última vez que ouvi a fala do engº H. Leitão - (1988)

-A última, das 4 vezes, que o engº Henrique Leitão falou comigo-


      Na manhã do dia 10 de junho (creio que em 1988), ao ler o JN, deparei com uma notícia que elencava as personalidades que seriam medalhadas nesse dia pelo Presidente da República. Li então que a cerimónia ia ter lugar no Palácio dos Congressos de Braga e nela, além de outros, obviamente, ia participar o engº Henrique Leitão. Ele estava referenciado, como figura a homenagear, na área do Mérito Industrial. Ora, na altura, estando eu a trabalhar e a residir no Porto, portanto ali a dois passos da cidade dos Arcebispos, mal me ficaria se não metesse pés a caminho a caminho de Braga. À data estava eu na obra do Aeroporto Sá Carneiro e já não pertencia à empresa há cinco anos.

      É verdade que eu, durante os dezassete anos em que trabalhei nas Construções Técnicas, como tantos outros colaboradores cujas especialidades e funções eram desempenhadas em Obra, não tinha muitas hipóteses de chegar à fala com o fundador das Construções Técnicas, mas isso também não me obcecava, porque, além de sempre ter procurado medir as distâncias e de tentar manter os pés assentes no chão, não fui nunca do género de se pôr em bicos de pés para patrão ver. Mas tudo isto para dizer que, enquanto para as pessoas, cuja base de trabalho era a Sede, seria normal ver e ouvir o engº H.L. no dia a dia, para mim isso era coisa transcendente. Por tal facto, pela raridade, ainda hoje me lembro das quatro vezes que o patrão falou comigo.

     A primeira vez foi na Marina de Vilamoura (1972), aquando da sua visita à obra. Depois de me ter visto retirar o carro de debaixo do telheiro (por minha iniciativa), para dar lugar ao seu Mercedes, disse-me que gostava muito da cor daquele meu Fiat 128 grená; na segunda vez foi na obra da Cimpor em Alhandra, quando, no interior do escritório e através da janela, viu o tal Fiat 128, de cuja cor havia gostado dois anos antes. Disse-me ele que aquele pó do clínquer, de tão agressivo, me iria dar cabo da pintura do carro; da terceira vez que o engenheiro H. L. me dirigiu a palavra, foi em Marrocos. Tinha ele regressado do Brasil, onde esteve exilado. Foi uma autêntica festa aquela sua ida à obra da C.I.O.R, em Marrocos. Até a "Carga da Brigada Ligeira" marroquina atuou nesse significativo evento. Mas então, dizia eu que, nesta terceira vez, quando o engº H.L se deslocou mesmo ao cerne da obra e se encontrou comigo, ouvi assim da sua boca:
     - Estou feliz por vir encontrar aqui muito boa gente! Também já estive, lá em cima, no escritório, com o Rogério Feio e com o Pedroso.

     Pareceu-me um desabafo com alguma ponta de emoção.
     Agora vou concluir como comecei: com a cerimónia da sua condecoração com a Medalha de Mérito Industrial, naquele dia 10 de junho, em Braga.
     Assisti, calmamente, a parte do cerimonial, mas quando, a certa altura, ouvi a chamada e a apresentação do engº Henrique Leitão para ser agraciado pelo Presidente M. Soares, com  aquele galardão, senti um tal arrepio, que ainda hoje o sinto quando dele me lembro.

     Terminada que foi a cerimónia, dirigi-me ao parque de estacionamento e aí cumprimentei e conversei, por uns momentos, com o engº H.L. e seu filho João Pedro, sendo este o próprio condutor da viatura. Foi esta a quarta, e última vez, que ouvi a fala do grande timoneiro daquela GRANDE ESCOLA que foram as CONSTRUÇÕES TÉCNICAS.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Cena XI - Cerveja na Cimpor - Alhandra (1975)

- Cerveja? Nem com, nem sem... cartão -
            Nem só de sagas passadas com o Santos, o Damas e outros estupores da Comissão, se faziam momentos de descontração na obra da Cimpor, em Alhandra. Havia aqueles que gostavam de rir à custa dos outros e, para isso, inventavam as mais estapafúrdias estórias, como aquela dos cartões, espécie de salvo-conduto, que habilitavam a malta a beber cerveja a 50% do preço.
            Na obra não tínhamos bar. Quem quisesse matar a sede ou lubrificar a garganta empoeirada pelo pó do clínker, tinha de o fazer com água quente da torneira, a não ser que pegasse no corpo e fosse até à tasca mais próxima, dentro da vila de Alhandra. Mas aqui era perigoso porque, ou se era membro da Comissão, e então estava isento de quaisquer compromissos laborais, ou então corria sérios riscos de se candidatar ao saneamento, vendo o seu nome escarrapachado no Plenário.
            Aproveitando a onda, o que fizeram uns bacanos? Para atender às queixas e lamentos dos capatazes Arnaldo Russo e Armando Mota, que, amiúde, contestavam a lei seca instituída, deram-lhes a conhecer uma modalidade que estaria em vigor no bar da Cimpor e que, de uma forma usual, já era há muito utilizada pelos próprios operários da Fábrica. Para isso, incentivaram os interessados a dirigir-se ao escritório, à secção de Controlo e, aí, solicitariam ao José Maria Custódio, um cartão que os habilitasse a entrar no bar da Cimpor, onde, num ambiente de ar condicionado e contra o pagamento de, apenas, 50% do preço, poderiam beber cerveja à vontade. O cartão, esse, era fundamental: era assim como uma espécie de livre-trânsito. Mas atenção: nem toda a gente tinha direito a tal benesse; dentro de uma escala hierárquica, só capatazes e encarregados podiam usufruir desse bem. Era o que mais faltava, ver aquela amálgama de gente da obra – cerca de 500 fulanos - sem dote nem porte, a entrar por ali adentro, conspurcando pavimentos de mármore, tapetes de sisal e cadeiras de napa, com aquelas botifarras e calçorras todas cagadas de pó ou lama, conforme a meteorologia exterior. Por isso, no dizer dos informadores, só gente de outra categoria, com porte acima da média, podia aceder àquele espaço.
            O Custódio, já prevenido, arranjou-lhes dois cartões do ponto do pessoal e apondo-lhe um qualquer carimbo, fez a entrega aos interessados.
            Munidos dos respetivos salvo-condutos, lá foram os dois capatazes a caminho daquele lugar, que lhes tinha sido descrito como um oásis dentro daquele inferno, que era a Fábrica da Cimpor. Embora a distância fosse curta, o caminho era cheio de labirintos e, pelo intrincado percurso, foi preciso ir perguntando, a quem encontravam, onde ficava o tão ansiado bar que, segundo lhes tinham dito, além de ter ar condicionado, mesas, cadeiras forradas a napa, onde se podiam sentar um bocado e ter cerveja a metade do preço, também tinha, à entrada, para receber e dar as boas-vindas aos potenciais clientes, uma jovem rececionista morenaça e boa como o milho.
            Subida que estava a escadaria até ao primeiro andar, logo vislumbraram a tal brasa que, agora ali ao vivo e a cores – ela vestia de veludo vermelho e preto – ainda se lhes afigurava melhor do que aquilo que antes lhes fora dito.
            O Arnaldo, sendo o mais expedito, tomou a dianteira, acercou-se da beldade e, com isso, estabeleceu-se o seguinte diálogo:
— Boa tarde, menina! – cumprimentou o Arnaldo Russo.

— Boa tarde, senhores! – respondeu a rececionista.

— Quem são e o que pretendem os senhores? – indagou a menina.

— Somos empregados das Construções Técnicas e, como pode ver, temos aqui as nossas credenciais para ir ao bar beber cerveja. – disseram, em uníssono.

Estupefacta, a menina nem sabia se havia de rir se de chorar. E tentando controlar-se e manter a postura, questionou:

— Ir ao bar beber cerveja? Mas que cartões são estes e quem é que vos disse que podiam aqui entrar, ainda para mais, para beber cerveja?

O Armando Mota, de garganta sequiosa q.b., empertigou-se e justificou:

— Então, os cartões são das Construções Técnicas, e como somos ambos capatazes da empresa, deram-no-los, na Secção de Controlo, dizendo que os cartões serviam para esta nossa pretensão.

A jovem senhora, vendo que aquela farsada era um embuste que alguém da obra tinha pregado aos dois empoeirados e sequiosos capatazes, tratou de os informar de que o bar era exclusivo dos técnicos da Fábrica, por isso, com ou sem cartões, as pessoas estranhas à Cimpor não poderiam ter acesso àquele espaço.
Acabrunhados, descoroçoados e desiludidos os dois comparsas deram meia volta, desceram a escadaria e juraram vingança a quem, despudoradamente, os tinha metido naquela alhada. E nem o facto de terem regalado o olho à custa da beldade da receção, lhes serenou os ânimos.
Foi uma semana negra para estes dois ingénuos, que tiveram que ouvir, na obra e fora dela, todo o tipo de piadas e gozações.

Nestas coisas, no campo das inovações, na fase experimental, alguma coisa, ou alguém, tem que ser a cobaia! O Russo e o Mota, mesmo sem querer, foram os predestinadas para tal fim. E, para eles, ainda bem, porque, se assim não fosse, já hoje não eram aqui recordados, com saudade.
 
           Soube, mais tarde, que o capataz Zé Luís Pirralho, (um alentejano de Cabrela) que foi o promotor da farsa, teve a distinta colaboração do controlador Zé Maria Custódio, (um alentejano de S. Teotónio). Mesmo fora da época carnavalesca, o episódio teve larga repercussão, dentro e fora da obra.


Extraído de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", VOL.II

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Cena X - Em C.T. (1968) - O Manuel Rodrigues versus Peres -


- Quando Trabalhar Sentado era um Escândalo -
 

 Após a saída do encarregado geral Ribeiro de Azevedo desta autónoma Frente de Trabalho - Tomada de Água - e terminada que estava a Chaminé, foi o Sr. Manuel Rodrigues - encarregado de 1.ª - destacado para chefiar este setor, na margem direita do rio Tejo.
Este novo dirigente, no sentido de fazer vincar um certo tipo de conduta no que concernia ao relacionamento com os seus colaboradores e, com ela, fazer a diferença para o seu antecessor Ribeiro de Azevedo, gostava de mostrar que o seu dedo era a nova batuta que, a partir de agora, comandava as hostes na Tomada de Água. Tanto assim era, que  evidenciava essa sua atitude a cada passo. E para que não restassem dúvidas, sempre que pretendia vincar o seu apego e fidelidade à empresa, invocava-o deste modo:

— Eu sou Construções Técnicas, vivo das Construções Técnicas e para as Construções Técnicas!

O Manuel Rodrigues, para não desafinar muito com o (mau) clima reinante entre encarregados antigos e técnicos novos, impunha-se de modo agressivo e não dava tréguas ao desenhador que, por azar deste, tinha sido designado para, em obra, dar apoio técnico ao encarregado do ferro, nas complexas montagens das Armaduras nos elementos a betonar. O técnico desenhador era o Peres, um rapaz oriundo da zona de Castelo Branco, mas residente em Lisboa. Ora o moço, para desempenhar a sua missão, não podia estar o dia inteiro de pé, de projetos, bloco e caneta nas mãos, como se compreende; até porque os desenhos a consultar, em simultâneo, eram três, a somar às folhas de Pormenores de Varões. Então o Peres, sentado numa qualquer peça de madeira, desempenharia a sua função de modo muito mais eficaz, do que estar para ali a fazer uma espécie de penitência, só para agradar aos caprichos do encarregado. Mas o Rodrigues é que não aceitava aquele porte que, para ele, era uma afronta aos bons costumes e tradições das Construções Técnicas. Então, para que a sua linha doutrinária fosse seguida por todos os que o escutavam, argumentava assim:

— Eu sou Construções Técnicas, vivo das Construções Técnicas e para as Construções Técnicas! Por tudo isso, não posso permitir que você esteja a trabalhar sentado, dando um mau exemplo aos trabalhadores.

O Peres, cheio de paciência, respondia:

— O senhor não tem a mais pequena noção do trabalho que eu estou a fazer, pois não? Já viu a parafernália de desenhos e pormenores que tenho que consultar e ditar para o Gabriel? Como é que eu posso estar de pé durante todo o dia a fazer o meu trabalho?

O Manuel Rodrigues, a caminho do seu escritório, ia dizendo a quem com ele cruzava:

— Vocês vão ver como é que vou lixar o gajo! Vou fotografá-lo a trabalhar sentado e mando os retratos para a Sede, para o engenheiro Cabrita.

Parvoíce do encarregado. Então ele sabia que a sua entrada na Tomada de Água, tinha sido mal recebida pela maioria dos que já lá trabalhavam sob o comando do Ribeiro Azevedo, e vai dizer, em voz alta, o que pretendia fazer ao Peres? Como se compreende, houve logo um bufo que alertou o desenhador para a tramoia que lhe iria ser preparada.
Agora, era ver o Manuel Rodrigues com a máquina fotográfica escondida, atrás das costas, a deslocar-se, pé ante pé, pelas esquinas dos pilares, para ver se apanhava o Peres em flagrante. É claro que nunca o conseguiu. Porque este, já avisado, de cada vez que via o detetive entrar na zona na do raio de ação da Polaroid, levantava-se, disfarçava assobiando para o lado, como se não fosse nada com ele. Foi um jogo do gato e do rato que terminou com a vitória do Peres, devido à falta de subtileza e astúcia do Rodrigues.


Extrato de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", VOL. II

Obs. Para que as Memórias dos dois protagonistas desta "cena" , se conservem nos nossos pensamentos.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Cena IX - As C.T. no INATEL (1975/1976)


O Futebol das C.T. no difícil INATEL 


Para desanuviar a mente e limar o físico, aceitei participar na equipa de futebol de onze, das Construções Técnicas. A empresa estava inscrita, e ia participar, no campeonato do INATEL do distrito de Lisboa (1975-1976) e, além da malta da Sede e do Estaleiro Geral de Alverca, também contavam com gente da obra de Alhandra.

Eis alguns nomes de quem me lembro:

Dirigentes: Revés; Pedroso; Salvado

Treinador: Mário

- da Sede: Gerardo, Caldeirinha, Pires, Vítor Reis, Talidomida, Fernando (Pechincha) e Olivério.

do Estaleiro: Vítor Ramos e Abreu.

- da obra de Alhandra: Rogério Feio, Caria Luís, Cartaxo[1], Virgílio Ramos, Valada, Armindo, Mário, Vinagre e o “Aranha Negra”.

Aquele cromo do “Aranha Negra” era o capataz Monteiro que, em certo jogo, insatisfeito com o lugar de suplente que lhe fora atribuído, e após ter visto o Gerardo dar um valente frango, desatou aos murros no banco, gritando:

― Eh pá! O que é isso? Eu cortava já os tomat..s se alguma vez dava um frango desses!

Atónito perante tal cena, o seccionista Manuel Pedroso, que hoje – por impedimento do Mário - acumulava com as funções de treinador, deu ordem de saída ao Gerardo e fê-lo substituir pelo Monteiro. Em conclusão digo que, do resultado de 3-3, passámos a 3-6 em pouco mais de vinte minutos. O guardião, de preto vestido e a quem nesse dia – talvez pela semelhança do equipamento com o russo YASHINE - os espetadores apelidaram de “Aranha Negra”, de cada vez que se lançava ao solo levantava uma tal nuvem de poeira que ninguém mais via a bola, a não ser... no fundo das redes. É que o diabo do Monteiro tinha a promessa do treinador Mário de que seria ele o titular da baliza, pelo menos naquele jogo. Ora, devido a qualquer falha na transmissão de poderes, que ocorrera na véspera, entre o Mário e o Pedroso, toda a desorganização descambou em goleada. Foram "só seis", porque a hora já ia adiantada, senão, se aquele keeper tivesse jogado desde o início, ninguém duvidava que os nossos adversários, mesmo a passo, teriam chegado à vintena.

Era um campeonato por séries, muito disputado. De tal modo assim era que, entre doze equipas, não fomos além do quinto lugar, tendo ficando, desde logo, arredados da lista dos dois apurados em cada série. Pelo menos deu para conhecer (superficialmente) outras equipas e outras gentes; algumas de mau porte, como eram os jogadores da Calçada dos Mestres, do Tenente Valdez e do Sindicato do Estivadores que, para eles, desporto sem umas valentes murraças, não era desporto nem era nada.

No defeso, chegámos a deslocar a Vale da Pinta, onde jogámos contra a União, tendo nós CT vencido por 3-1. Mas foi mais um jogo para convívio e justificar umas sandes e uns copos, nada mais.





[1] Este jogador (Cartaxo), jogou no Alhandra, Varzim, F.C.Porto, Olhanense e Estoril
Texto extraído do VOL. II, de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA"

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Cena VIII - Na Despedida da Dª Nazaré (1969)

Jantar de Pré-Revolução na "Casa do Alentejo" 


A assistente social das Construções Técnicas, Dª Nazaré, fora designada para fazer parte da estrutura da delegação da empresa em Angola. Ela era uma pessoa muito agradável, de trato fácil e sempre disposta a colaborar com toda a gente, independentemente da categoria profissional de cada um. Então, de modo a prestar homenagem e manifestar apreço pelo modo como exercera a sua atividade, nada melhor que presentear a senhora com uma festa de despedida.

Não estou bem certo das pessoas que organizaram a festa, mas não devo andar muito longe da realidade se avançar com os nomes da esquerda avançada das C.T, mesmo antes do 25 de Abril. Seriam o engº Brás Menezes; o dr. Vítor Ramalho; o fotógrafo Eduardo Franco e o jornalista da casa, Carlos Alberto Correia. O local escolhido foi a Casa do Alentejo, ali em plena baixa lisboeta. Com um acolhedor ambiente, o vasto salão de festas, no primeiro andar, era o cenário ideal para que se desse largas à imaginação de cada um: a discursar; manjar e, depois, em jeito de remate, entoar algumas melodias da moda. Desde que não ferisse os ouvidos ou a sensibilidade dos presentes, todo o resto valia. Mas não especulemos: no fim, logo se veria.

No repasto, é possível que tenham estado presentes mais de uma centena de pessoas, mas isso não era o mais importante. O que importava era o reconhecimento e o carinho que todos queriam demonstrar à senhora. Depois de os promotores terem oferecido à Dª Nazaré um esbelto ramo de flores, alguns convivas usaram da palavra, evocando a qualidade da ação desenvolvida pela homenageada, ao longo dos anos.

E para que a festa terminasse em apogeu, alguém ligado à organização e com tendência para a irreverência e rebeldia, irrompeu com as “Janeiras”, para prosseguir com: “Vejam bem” e terminar, de modo brusco, com a “Pedra Filosofal”, do António Gedeão. Porquê, bruscamente? Porque, na época, aquelas cantigas de intervenção e protesto estavam proibidas. Quem se atrevesse a cantarolá-las, independentemente do bom ou mau timbre de voz, sujeitava-se a ir, de charola, passar uma temporada numa cadeia especialmente dedicada aos irreverentes ao regime. E quando alguém, a sério ou em jeito de brincadeira de maus gosto, cochichou que de dois fulanos, de fato e gravata, com cara de agentes da polícia secreta, estariam a rondar a porta de entrada, o grupo de cantores de ocasião, achou que a serenata ficaria por ali, não fosse alguém ter que ir fazer a digestão do jantar para a António Maria Cardoso.

Quanto a mim, o ambiente tornara-se pesado, e eu já estava a ver quando é que os estranhos engravatados subiam aquela escadaria para deitar a luva a alguns de nós. Foi um fim de festa um tanto ou quanto anárquico, mas todos: promotores, homenageada e homenageadores, saíram dali ilesos e livres, creio que devido à sensata e atempada desmobilização do sarau musical.

Extrato de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", Vol. II
 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Cena VII - O Muleta Negra no Carregado


Onde se fala de cromos, excêntricos e golpistas

- Santos: o Muleta Negra -    

À semelhança do que acontecia nas outras obras onde trabalhei na adolescência, já relatadas no Volume I, também nestas apareciam aqueles indivíduos que, por isto ou por aquilo, patenteavam uma certa excentricidade; porque fugiam ao comum comportamento do cidadão normal, eram rotulados de cromos, excêntricos ou morcões. Durante a minha estada nesta obra, entre 1966-1969, muitas peripécias ocorreram, mas seria fastidioso esmiuçá-las todas. Esta, que se segue, é a que, por agora, pretendo realçar. 

 Este nosso amigo era um fulano que se chamava Artur Santos, mas que toda a gente o conhecia por Muleta Negra. Era assim alcunhado devido a dois fatores: um, porque ele funcionava como muleta no suporte à empresa, em termos de angariação de pessoal para as obras, e como a sua tez, por demais negra, devido ao surro, era evidente… O outro motivo, terá sido devido ao facto de existir na altura um toureiro de meia-tijela, que apareceu por aí com aquele pseudónimo. De tão fraco ele era, que desapareceu de cena tão lesto como aparecera. Este Santos tinha como função principal percorrer certas zonas do país, na angariação de mão-de-obra para as obras em curso. Ele tinha um prémio de 50$00 por cada trabalhador que apresentasse no escritório da obra do Carregado, para isso, e para facilitar a mobilização, ele prometia mundos e fundos que, como se depois se constatava, não poderia garantir. Por isso é que, de vez em quando, ele aparecia na obra com os olhos amarrotados e, ao vê-lo naquele estado, já todos sabiam que a gama de aparelhos de televisão, frigoríficos, tratamento de roupas e até mulheres, por ele prometidas, não tinham sido distribuídas pelas Construções Técnicas aos trabalhadores por ele angariados.

O Muleta Negra, vindo de uma obra da Somague, creio que da Barragem do Carrapatelo, queria fazer crer a todos com quem falava que, antes de ser barragista, fora empregado da Citroen, em França, onde tinha a profissão de experimentador de carros. Ora eu estou em crer que este mentiroso compulsivo, nem um Dumper sabia conduzir, quanto mais um Citroen boca-de-sapo…

O Santos protagonizou outros episódios, noutras obras que, a seu tempo, serão narrados.
 


Extrato do VOL.II de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA"

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Cena VI - Um Mustaphá Enjoativo



- Um francês saturado de tanto “Mustaphá” -
Na obra das Construções Técnicas, na Central Termoelétrica do Carregado, havia uma equipa de franceses, funcionários da "Bergeron", que tinha a seu cargo a montagem da Estação Elevatória da Tomada de Água e da 2ª Estação de Bombagem. Eram eles o Robert, que era o chefe, o Charles e o Jacques. O meu chefe, Virgílio Picanço, encarregado geral da zona da Central, homem com muitos anos de Marrocos e de França e, como tal, falava bem a língua de Vítor Hugo, passava por lá, pela 2.ª Estação de Bombagem e entretinha-se um bocado na conversa com eles. Também eu, como subordinado do Picanço, por lá passava todos os dias, já que era pessoal da minha equipa que dava apoio de construção civil àquela empresa francesa. Por isso, foi com toda a naturalidade que se estabeleceu um clima bastante cordial entre nós C.T. e a Bergeron. 
Ainda que qualquer dos gauleses bebesse bem, o Robert, que era o chefe e tinha que dar o exemplo, era o que bebia mais. Era quase sempre brandy Sandeman, bebido pela garrafa, cujo gargalo, desde cedo, começava a inclinar. Pelos vistos e pela quantidade, dava a impressão de que aquilo seria o aperitivo para o almoço, para o lanche e, também, para o jantar. Esta equipa francesa jantava num restaurante do Carregado, "O Calçada", onde trabalhava o Alexandre, um rapaz transmontano que, anos depois, se estabeleceu no Cartaxo, e onde, ainda hoje, explora um restaurante com o nome de "O Transmontano". Ele conheceu-os bem, especialmente nas noitadas em que tinha que se manter a pé, até fora de horas, a aturar aquelas esponjas. A título informativo, também direi que o cartaxeiro António Simão, operário das C.T., trabalhou, a partir daqui, com esta equipa francesa, durante alguns anos, em vários países de África. 
Uma vez, convidara-me para jantar com eles nesse tal restaurante do Carregado, a fim de comemorar já nem sei o quê. No fim do repasto, já em ambiente de copofonia, cai na asneira de divulgar aos fulanos que, há dois anos atrás, fora vocalista de um conjunto Pop e, por isso, até sabia umas canções francesas, daquelas que estavam em voga. Resultado: nunca mais me deixaram em paz enquanto não comecei a cantarolar. Comecei pelo “Tchim, Tchim, a la Santé”, de Richard Anthony, que foi amplamente aplaudida. Para segunda canção escolhi "Donne Moi Ma Chance", do mesmo cantor, que, tal como a primeira, foi recebida com calorosos aplausos; depois, em jeito de remate, arranquei com “La Salsa del Pomodoro”. Esta, que era a canção em que eu mais confiança depositava, ficou-se pela intenção.
Foi mesmo um sol de pouca dura, porque o Robert, já pingado, interrompeu a minha interpretação, alegando que, de bom grado, escutaria tudo o que eu quisesse cantar: desde um qualquer Fado, até uma qualquer canção de "Mireille Mathieu"; Johnny Halliday; Charles Aznavour, ou mesmo do mal afamado Antoine... todas, menos esta, que falava insistentemente no Mustaphá até à exaustão. E o Robert, espumando da boca, dispôs-se a explicar o porquê de tanta aversão.
Trabalhara ele, há uns três anos atrás, num empreendimento industrial em Marrocos, mais propriamente na Mohammedia, perto de Casablanca. Quando aí alugou um T0, numa residencial airosa, na zona baixa da cidade, estava longe de supor que o Alá lhe tinha reservado um lugarzinho mesmo nas entranhas do Inferno. É que, mesmo por debaixo daquele vistoso apartamento, jazia um Bar. Mas não era um Bar qualquer, já que, tendo em conta que se tratava de um país muçulmano, aquele estabelecimento tinha um horário por demais alargado. Pudera, era propriedade do chefe da polícia local... É verdade. Num Bar que abria à meia-noite e fechava às cinco da matina, uma das novidades, que servia de passatempo e chamariz para a clientela, era uma "moderna" máquina de discos, que não parava de tocar toda a santa noite e madrugada. Mas o principal problema do Robert não apenas o ruído em si, mas, pior que isso, era a cantilena que era quase sempre a mesma, isto é, "vira o disco e toca a mesma". Dava a impressão, que não havia outra música no raio da maquineta senão a que falava do diabo do Mustaphá. É evidente que o Robert, depois daquele massacre de umas quantas horas em branco, só conseguia pregar olho lá para perto das quatro ou cinco da manhã. Mas, segundo me disse o francês, o pior, o que mais o incomodava, era o facto de o disco tocado ser quase sempre o mesmo. Estava mesmo a ver-se, que a música preferida daqueles marroquinos que frequentavam o bar era aquela da “La Salsa del Pomodoro”, criação do Bob Azzam e cujo refrão fala do Mustaphá, repetindo-o vezes sem conta: "Mustaphá, ya Mustaphá.... Dizia-me o nosso amigo Robert, que ainda tentou convencer o proprietário do Bar a vender-lhe o disco por bom dinheiro, coisa que o outro não aceitou. Se aquela era a música preferida da clientela, como é que o dono ia desfazer-se do disco e sujeitar-se a que a casa ficasse às moscas? Mas a verdade é que o Robert tinha razões de sobra para odiar, para sempre, aquele maldito disco.
Voltando à realidade, demo-nos conta de que o nosso jantar já tinha sido digerido fazia tempo, e que, de tanto se falar em Mustaphá, Marrocos, Ramadão e mais as secas areias do deserto, foi sem estranheza que vimos o Robert ordenar ao Alexandre que trouxesse três garrafas de Champagne, para ser bebido por aquelas sequiosas gargantas, ao improvisado som da "Marselhesa". Mas... Mustaphá, jamais!

Autor: José Caria Luís

Obs. Texto extraído do Vol. II do "DEGRAUS e MARCOS da VIDA". 


terça-feira, 2 de julho de 2013

Cena V - Nas C.T. (1966) - Os Três Mosqueteiros Contra o Rosa Preta


- O trio: Muleta Negra, Baldaia e o Bigodes –

Longe dos grandes centros, aquela malta, em termos de divertimento, não tinha muito por onde escolher. Pelo menos durante a semana não tinham alternativas à taberna e casa de pasto do Sabino ou à do Machado, na minúscula povoação da Vala do Carregado.
 No Sabino, já eles não paravam tanto, porque este atlético chauffeur de camião, ex-jogador de futebol e com um caparro[1] que metia respeito, malhava nos desordeiros sempre que a isso o obrigavam. O Machado, já mais velhote e meio abatido fisicamente, tolerava, com brandura, os comportamentos menos cívicos que os clientes mais excêntricos teimavam em adotar.
Com especial destaque para este trio, era então na tasca do Machado que se passava o serão. Ora contando anedotas, ora cantando, jogando à sueca ou a armar desordem, era como se estivessem em suas casas. No entanto, os clientes do Machado não eram apenas trabalhadores da obra; os moradores locais também passavam ali uns bocados de serão, a jogar cartas. Um deles, o vizinho Rosa Preta, pescador de profissão e ex-guarda redes do Benfica que, devido aos muitos anos de vizinhança e assiduidade, era considerado pelo Machado como se fosse da casa. Basta dizer que, de cada vez que o Rosa precisava "molhar  o bico", não fazia o Sr. Machado perder o seu precioso tempo, já que ele próprio se deslocava até ao barril e deste vertia para a caneca a quantidade de tintol que considerava suficiente para satisfazer a sua momentânea gula. Tudo em família, portanto.

Aos sábados, dias em que se recebia a semanada, a noite trazia sempre engulhos tais, que o Sr. Machado sentia que, em cada um que passava, lhe roubava, se não anos, ao menos meses de vida.
E foi assim que, naquele conhecido mau ambiente, teve início mais uma saga noturna. Desta vez, os protagonistas do espetáculo, para não variar, foram os mesmos do costume, exceto o ex-desportista que, por ser considerado como fazendo parte da mobília da casa, evitava meter-se em sarilhos.
Quando o trio de Mosqueteiros entrou na taberna, deu para perceber que a paz do Senhor… Machado tinha os segundos contados. O Muleta Negra (Artur Santos) e o Raul Baldaia, em passo lento, caminharam ambos rumo ao balcão, onde se encostaram aguardando atendimento. O terceiro do grupo, o Bigodes, que era carpinteiro da equipa do Daniel, situou-se no espaço livre entre mesas. Com uma certa destreza manual, começou a ensaiar um estranho rodopio com aquela bengala que costumava usar como talismã, ao mesmo tempo que berrava para os circunstantes:

― Calai-vos gandulos, se não, f***-vos a cornia!

O Sr. Machado, receando que aquele discurso viesse a ferir algumas suscetibilidades, rogou, com voz trémula, ao recém-chegado para que se acalmasse, moderasse a linguagem e terminasse com aquelas manobras da bengala, mas o Bigodes não o ouvia e voltava a repetir:

― Calai-vos gandulos, se não, f***-vos a cornia!

O nosso conhecido Rosa Preta, que estava num pacato jogo de cartas, começou a impacientar-se e levantou-se. Já de pé, interrompeu aquelas frases obscenas, dizendo ao Bigodes:

― Ó chefe! Pare já com essa linguagem; não repita mais isso!

Como resposta, ouviu assim, por parte do provocador:

— Cala-te aí já, ó gandulo, se não, f***-te a cornia!

 O Rosa nem pestanejou: ao mesmo tempo que lhe arrancava a bengala da mão, espetou-lhe uma valente cabeçada na testa, atirando com o bengaleiro, via porta da rua, para a valeta. Ainda assim, o Rosa achando que o serviço ainda não estava terminado, aprestava-se para sair ao encontro do prostrado Bigodes, quando o Raul Baldaia e o Muleta Negra se entrepuseram entre ombreiras, tentando barrar-lhe o caminho. O Baldaia, talvez para amedrontar e conter o avanço do Rosa, berrou:

— Quem quiser vater no Vigodes[2], tem que passar por cima do meu cadábel!

Foi então que o Rosa Preta, de um salto, cilindrou os cadábeles aos defensores do Vigodes, enquanto este se esforçava para se levantar e ir retaliar sobre o seu agressor. O homem da bengala (agora sem ela), aproveitando o facto de o  Rosa estar ocupado com os outros dois, levantou-se e, puxando de uma navalha de ponto e mola, gritou:

— Agarrem-me! Agarrem-me, senão eu dou um traço[3] no gajo!

Agora, era ver o Santos e mais o Baldaia a tentarem segurar o Bigodes, só que este, sentindo-se agarrado, mudando de tática e de discurso, gritava:

— Não me agarrem! Não me agarrem que ainda é pior! Vós nem sabeis daquilo que sou capaz de fazer! Deslarguem-me, senão dou um traço num!

E os dois amigos deslargaram mesmo o Bigodes, deixando-o à mercê do Rosa Preta. E para terminar a noitada, que já ia longa, teve que o Rosa Preta dar um chuto na navalha e dois murros no toutiço do seu dono. Mas o mais curioso é que a esta última cena já não assistiram nem participaram os dois comparsas Raul Baldaia e o Artur Santos que, aproveitando uma falha na vigilância, se tinham posto ao fresco, em passo de corrida, a caminho das casernas das Construções Técnicas.
Na segunda-feira de manhã, quando, na obra, cada um dos Três Mosqueteiros foi questionado pelo encarregado Picanço acerca das mazelas e nódoas negras que evidenciavam na cara, respondiam argumentando que tinham caído na linha do comboio, quando, na escuridão da noite, tentavam atravessá-la.

Segundo constou, o trio, depois deste famigerado episódio, terá optado por frequentar outras paragens, outros locais, desde Vila Nova da Rainha, Alenquer... até em Vila Franca de Xira chegaram a abancar, mas retornar à Vala do Carregado, estava fora de hipótese. Ao fim e ao cabo, o que eles queriam era estarem precavidos contra qualquer "Rosa" espinhosa, garantindo que, ali por perto, não haveria um qualquer guarda-redes na reforma, mas em forma, como era o caso do Rosa Preta. Para vexame e porrada, já bastava a que os vitimara na última sessão na tasca do Machado. Elas não mataram, mas moeram que se fartaram!
 



[1] Grande porte físico
[2] Era duriense, trajava fato, chapéu, e usava farto bigode com pontas reviradas
[3] Golpe de navalha
 
Obs. Texto extraído do Vol. II, do livro "DEGRAUS e MARCOS da VIDA" (em fase de feitura).