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O trio: Muleta Negra, Baldaia e o Bigodes –
Longe
dos grandes centros, aquela malta, em termos de divertimento, não tinha muito
por onde escolher. Pelo menos durante a semana não tinham alternativas à taberna
e casa de pasto do Sabino ou à do Machado, na minúscula povoação da Vala do
Carregado.
No Sabino, já eles não paravam tanto, porque
este atlético chauffeur de camião, ex-jogador de futebol e com um caparro[1]
que metia respeito, malhava nos desordeiros sempre que a isso o obrigavam. O
Machado, já mais velhote e meio abatido fisicamente, tolerava, com brandura, os
comportamentos menos cívicos que os clientes mais excêntricos teimavam em adotar.
Com
especial destaque para este trio, era então na tasca do Machado que se passava o serão.
Ora contando anedotas, ora cantando, jogando à sueca ou a armar desordem, era
como se estivessem em suas casas. No entanto, os clientes do Machado não eram
apenas trabalhadores da obra; os moradores locais também passavam ali uns
bocados de serão, a jogar cartas. Um deles, o vizinho Rosa Preta, pescador de profissão e ex-guarda redes do Benfica que, devido aos muitos anos de vizinhança e assiduidade, era considerado pelo Machado como se fosse da casa.
Basta dizer que, de cada vez que o Rosa precisava "molhar o bico", não fazia o Sr. Machado perder o seu precioso tempo, já que ele próprio se deslocava até ao barril e deste vertia para a caneca a quantidade de tintol que considerava suficiente para satisfazer a sua momentânea gula. Tudo em família, portanto.
Aos
sábados, dias em que se recebia a semanada, a noite trazia sempre engulhos
tais, que o Sr. Machado sentia que, em cada um que passava, lhe roubava, se não
anos, ao menos meses de vida.
E
foi assim que, naquele conhecido mau ambiente, teve início mais uma saga
noturna. Desta vez, os protagonistas do espetáculo, para não variar, foram os mesmos do costume,
exceto o ex-desportista que, por ser considerado como fazendo parte da mobília
da casa, evitava meter-se em sarilhos.
Quando
o trio de Mosqueteiros entrou na taberna, deu para perceber que a paz do Senhor… Machado tinha
os segundos contados. O Muleta Negra
(Artur Santos) e o Raul Baldaia, em passo lento, caminharam ambos rumo ao balcão, onde se
encostaram aguardando atendimento. O terceiro do grupo, o Bigodes, que era carpinteiro da equipa do Daniel, situou-se no
espaço livre entre mesas. Com uma certa destreza manual, começou a ensaiar um
estranho rodopio com aquela bengala que costumava usar como talismã, ao mesmo
tempo que berrava para os circunstantes:
―
Calai-vos gandulos, se não, f***-vos a
cornia!
O
Sr. Machado, receando que aquele discurso viesse a ferir algumas suscetibilidades,
rogou, com voz trémula, ao recém-chegado para que se acalmasse, moderasse a
linguagem e terminasse com aquelas manobras da bengala, mas o Bigodes não o ouvia e voltava a repetir:
―
Calai-vos gandulos, se não, f***-vos a
cornia!
O
nosso conhecido Rosa Preta, que
estava num pacato jogo de cartas, começou a impacientar-se e levantou-se. Já de
pé, interrompeu aquelas frases obscenas, dizendo ao Bigodes:
―
Ó chefe! Pare já com essa linguagem; não repita mais isso!
Como
resposta, ouviu assim, por parte do provocador:
—
Cala-te aí já, ó gandulo, se não, f***-te a
cornia!
O Rosa nem pestanejou: ao mesmo tempo que lhe
arrancava a bengala da mão, espetou-lhe uma valente cabeçada na testa, atirando
com o bengaleiro, via porta da rua,
para a valeta. Ainda assim, o Rosa achando que o serviço ainda não estava
terminado, aprestava-se para sair ao encontro do prostrado Bigodes, quando o Raul Baldaia e o Muleta Negra se entrepuseram entre ombreiras, tentando barrar-lhe o
caminho. O Baldaia, talvez para amedrontar e conter o avanço do Rosa, berrou:
—
Quem quiser vater no Vigodes[2],
tem que passar por cima do meu cadábel!
Foi
então que o Rosa Preta, de um salto,
cilindrou os cadábeles aos defensores do Vigodes, enquanto este se
esforçava para se levantar e ir retaliar sobre o seu agressor. O homem da
bengala (agora sem ela), aproveitando o facto de o Rosa estar ocupado com os outros dois, levantou-se
e, puxando de uma navalha de ponto e mola, gritou:
—
Agarrem-me! Agarrem-me, senão eu dou um traço[3]
no gajo!
Agora,
era ver o Santos e mais o Baldaia a tentarem segurar o Bigodes, só que este,
sentindo-se agarrado, mudando de tática e de discurso, gritava:
—
Não me agarrem! Não me agarrem que ainda é pior! Vós nem sabeis daquilo que sou capaz de fazer!
Deslarguem-me,
senão dou um traço num!
E
os dois amigos deslargaram mesmo o Bigodes, deixando-o à mercê do Rosa Preta. E
para terminar a noitada, que já ia longa, teve que o Rosa Preta dar um chuto na
navalha e dois murros no toutiço do seu dono. Mas o mais curioso é que a esta
última cena já não assistiram nem participaram os dois comparsas Raul Baldaia e
o Artur Santos que, aproveitando uma falha na vigilância, se tinham posto ao
fresco, em passo de corrida, a caminho das casernas das Construções Técnicas.
Na
segunda-feira de manhã, quando, na obra, cada um dos Três Mosqueteiros foi questionado pelo encarregado Picanço acerca das mazelas e nódoas negras que evidenciavam na cara,
respondiam argumentando que tinham caído na linha do comboio, quando, na escuridão da noite, tentavam
atravessá-la.
Segundo
constou, o trio, depois deste famigerado episódio, terá optado por frequentar
outras paragens, outros locais, desde Vila Nova da Rainha, Alenquer... até em Vila Franca de Xira chegaram a abancar, mas retornar à Vala do Carregado, estava fora de hipótese. Ao fim e ao cabo, o que eles queriam era estarem precavidos contra qualquer "Rosa" espinhosa, garantindo que, ali por perto, não haveria um
qualquer guarda-redes na reforma, mas em forma, como era o caso do Rosa Preta. Para vexame e porrada, já bastava a que os vitimara na última sessão na tasca do Machado. Elas não mataram, mas moeram que se fartaram!
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