sexta-feira, 26 de julho de 2013

Cena XI - Cerveja na Cimpor - Alhandra (1975)

- Cerveja? Nem com, nem sem... cartão -
            Nem só de sagas passadas com o Santos, o Damas e outros estupores da Comissão, se faziam momentos de descontração na obra da Cimpor, em Alhandra. Havia aqueles que gostavam de rir à custa dos outros e, para isso, inventavam as mais estapafúrdias estórias, como aquela dos cartões, espécie de salvo-conduto, que habilitavam a malta a beber cerveja a 50% do preço.
            Na obra não tínhamos bar. Quem quisesse matar a sede ou lubrificar a garganta empoeirada pelo pó do clínker, tinha de o fazer com água quente da torneira, a não ser que pegasse no corpo e fosse até à tasca mais próxima, dentro da vila de Alhandra. Mas aqui era perigoso porque, ou se era membro da Comissão, e então estava isento de quaisquer compromissos laborais, ou então corria sérios riscos de se candidatar ao saneamento, vendo o seu nome escarrapachado no Plenário.
            Aproveitando a onda, o que fizeram uns bacanos? Para atender às queixas e lamentos dos capatazes Arnaldo Russo e Armando Mota, que, amiúde, contestavam a lei seca instituída, deram-lhes a conhecer uma modalidade que estaria em vigor no bar da Cimpor e que, de uma forma usual, já era há muito utilizada pelos próprios operários da Fábrica. Para isso, incentivaram os interessados a dirigir-se ao escritório, à secção de Controlo e, aí, solicitariam ao José Maria Custódio, um cartão que os habilitasse a entrar no bar da Cimpor, onde, num ambiente de ar condicionado e contra o pagamento de, apenas, 50% do preço, poderiam beber cerveja à vontade. O cartão, esse, era fundamental: era assim como uma espécie de livre-trânsito. Mas atenção: nem toda a gente tinha direito a tal benesse; dentro de uma escala hierárquica, só capatazes e encarregados podiam usufruir desse bem. Era o que mais faltava, ver aquela amálgama de gente da obra – cerca de 500 fulanos - sem dote nem porte, a entrar por ali adentro, conspurcando pavimentos de mármore, tapetes de sisal e cadeiras de napa, com aquelas botifarras e calçorras todas cagadas de pó ou lama, conforme a meteorologia exterior. Por isso, no dizer dos informadores, só gente de outra categoria, com porte acima da média, podia aceder àquele espaço.
            O Custódio, já prevenido, arranjou-lhes dois cartões do ponto do pessoal e apondo-lhe um qualquer carimbo, fez a entrega aos interessados.
            Munidos dos respetivos salvo-condutos, lá foram os dois capatazes a caminho daquele lugar, que lhes tinha sido descrito como um oásis dentro daquele inferno, que era a Fábrica da Cimpor. Embora a distância fosse curta, o caminho era cheio de labirintos e, pelo intrincado percurso, foi preciso ir perguntando, a quem encontravam, onde ficava o tão ansiado bar que, segundo lhes tinham dito, além de ter ar condicionado, mesas, cadeiras forradas a napa, onde se podiam sentar um bocado e ter cerveja a metade do preço, também tinha, à entrada, para receber e dar as boas-vindas aos potenciais clientes, uma jovem rececionista morenaça e boa como o milho.
            Subida que estava a escadaria até ao primeiro andar, logo vislumbraram a tal brasa que, agora ali ao vivo e a cores – ela vestia de veludo vermelho e preto – ainda se lhes afigurava melhor do que aquilo que antes lhes fora dito.
            O Arnaldo, sendo o mais expedito, tomou a dianteira, acercou-se da beldade e, com isso, estabeleceu-se o seguinte diálogo:
— Boa tarde, menina! – cumprimentou o Arnaldo Russo.

— Boa tarde, senhores! – respondeu a rececionista.

— Quem são e o que pretendem os senhores? – indagou a menina.

— Somos empregados das Construções Técnicas e, como pode ver, temos aqui as nossas credenciais para ir ao bar beber cerveja. – disseram, em uníssono.

Estupefacta, a menina nem sabia se havia de rir se de chorar. E tentando controlar-se e manter a postura, questionou:

— Ir ao bar beber cerveja? Mas que cartões são estes e quem é que vos disse que podiam aqui entrar, ainda para mais, para beber cerveja?

O Armando Mota, de garganta sequiosa q.b., empertigou-se e justificou:

— Então, os cartões são das Construções Técnicas, e como somos ambos capatazes da empresa, deram-no-los, na Secção de Controlo, dizendo que os cartões serviam para esta nossa pretensão.

A jovem senhora, vendo que aquela farsada era um embuste que alguém da obra tinha pregado aos dois empoeirados e sequiosos capatazes, tratou de os informar de que o bar era exclusivo dos técnicos da Fábrica, por isso, com ou sem cartões, as pessoas estranhas à Cimpor não poderiam ter acesso àquele espaço.
Acabrunhados, descoroçoados e desiludidos os dois comparsas deram meia volta, desceram a escadaria e juraram vingança a quem, despudoradamente, os tinha metido naquela alhada. E nem o facto de terem regalado o olho à custa da beldade da receção, lhes serenou os ânimos.
Foi uma semana negra para estes dois ingénuos, que tiveram que ouvir, na obra e fora dela, todo o tipo de piadas e gozações.

Nestas coisas, no campo das inovações, na fase experimental, alguma coisa, ou alguém, tem que ser a cobaia! O Russo e o Mota, mesmo sem querer, foram os predestinadas para tal fim. E, para eles, ainda bem, porque, se assim não fosse, já hoje não eram aqui recordados, com saudade.
 
           Soube, mais tarde, que o capataz Zé Luís Pirralho, (um alentejano de Cabrela) que foi o promotor da farsa, teve a distinta colaboração do controlador Zé Maria Custódio, (um alentejano de S. Teotónio). Mesmo fora da época carnavalesca, o episódio teve larga repercussão, dentro e fora da obra.


Extraído de "DEGRAUS e MARCOS da VIDA", VOL.II

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